Capítulo II

O Yoga da Sabedoria que Discerne
Dom Beda Griffiths O.S.B. (1906-1993)
Tradução: Roldano Giuntoli

No hinduísmo, a virtude fundamental do caminho da sabedoria espiritual é o discernimento, viveka. Viveka significa, especificamente, a habilidade de discernir entre o real e o irreal. Vivemos em um mundo em que o real e o irreal estão sempre mesclados. O discernimento se dá quando chegamos ao ponto onde discernimos a realidade eterna distinta da, ainda que imanente na, realidade transitória da experiência do dia-a-dia. Viveka, então, é o discernimento da realidade eterna no interior de todo o conjunto da Natureza e da vida. Esse discernimento traz liberdade. Apenas quando nos relacionarmos ao Atman, ao eterno e imutável em meio às alterações e processos da vida, não mais estaremos acorrentados.

A introdução do capítulo 2 é feita por Sanjaya, que faz o papel de narrador ao longo do mesmo. Ele confere continuidade ao discurso entre Krishna e Arjuna, que forma a substância do Gita.
1. Então, elevou-se o Espírito de Krishna dirigindo-se a Arjuna que, com olhos marejados, havia mergulhado em desalento e pesar.
Krishna desafia Arjuna:

2. De onde provém esse inerte desalento, Arjuna, neste momento, o momento da prova? Homens fortes não conhecem o desalento, Arjuna, pois isso não lhes confere nem o céu, nem a terra.

3. Não caia em fraqueza degradante, pois isso não faz com que um homem seja homem. Livra-te desse ignóbil desânimo e, eleva-te como o fogo que fulmina tudo o que lhe está à frente.

Krishna começa censurando Arjuna, por seu “inerte desalento” e “fraqueza degradante”. Ele apela primeiramente à consciência social de Arjuna. Devemos nos lembrar que Arjuna é um guerreiro, um kshatriya, cujo dever é lutar pela causa do direito. Na Índia antiga, havia quatro castas, ou varnas: o brâmane ou sacerdote, que era o mestre da lei, tanto no que concerne à religião, quanto à sociedade, o kshatriya ou guerreiro, cujo dever era o de defender as leis da religião e da justiça, o vaishya, agricultor ou comerciante, que era o responsável por prover as necessidades da vida e, o shudra ou operário, que prestava serviços à comunidade dentro de todas as necessidades dela. À sua maneira, esta era uma organização equilibrada de sociedade, que possui encontra sua contraparte, por exemplo, na República, ou “estado ideal”, de Platão. O contexto social do Gita, pertence a essa ordem feudal de sociedade e, Krishna apela, antes de mais nada, a essa lei ou dharma. Só paulatinamente, é que Arjuna se elevará acima desse entendimento comum, para o entendimento mais profundo do lugar do homem no universo. Entretanto, ele já começa a duvidar da sabedoria desse dharma, dizendo:

4. Devo veneração a Bhishma e a Drona. Terei Eu que matar com minhas flechas o irmão de meu avô, o grande Bhishma? Deverão minhas flechas, na batalha, assassinar Drona, meu mestre?

Bhishma representa a fé cega e, Drona é o guru, o mestre, que representa a lei religiosa e a tradição. Isto evidencia o problema desse conflito, em que, de um lado há as paixões, instintos e desejos e, de outro as tradições religiosas, leis e costumes do país. A desilusão de Arjuna, que se compara àquela experimentada hoje por tantas pessoas, deve-se ao fato de que nenhum desses valores parece mais ter relevância. É a mesma situação do Evangelho, em que, de um lado há os publicanos e os pecadores, que representam a natureza humana seguindo seus próprios desejos e instintos, e, de outro há os escribas e os fariseus, que representam a lei e a religião. Indubitavelmente, não podemos encontrar resposta nesse nível; não que um grupo esteja certo e o outro errado. No Evangelho, Cristo aponta para o caminho que está além do conflito, acima dos valores, tanto dos fariseus, quanto dos pecadores.

Arjuna, no campo de batalha, encontra-se precisamente nesse conflito: “Terei Eu que matar com minhas flechas o irmão de meu avô, o grande Bhishma? Deverão minhas flechas, na batalha, assassinar Drona, meu mestre?” Ele percebe estar lutando contra sua própria natureza e, contra as instituições e os costumes de seu país. Uma experiência similar é hoje muito comum. Muitas pessoas percebem a sociedade como um todo, corrompida. Para alguns, é a sociedade capitalista que está corrompida, enquanto outros ficam enjoados com a corrupção política, em todo o mundo. Outros ainda, estão especificamente conscientes da corrupção espiritual e do domínio do materialismo, tendendo a perder a fé na sociedade, como tal, querendo apenas evadir-se dela de uma vez.

5. Terei Eu que matar meus próprios mestres que, apesar de gananciosos para com meu reino, ainda são meus sagrados instrutores? Melhor seria Eu comer, nesta vida, o alimento de um mendigo, do que comer o alimento de um rei, que tivesse o sabor do sangue deles.

Arjuna preferiria tornar-se um mendigo e evadir-se da sociedade, a conquistar em batalha e envolver-se com todos os pecados daquela sociedade.
6. E, não sabemos o que seria melhor para nós, se a vitória deles, ou a nossa. Estes que estão a nossa frente, são os filhos de meu tio e rei, Dhritharashtra: deveríamos desejar viver, após a morte deles?

A situação é tal que realmente não enxergamos vitória em qualquer dos lados. Tão amiúde, a história verdadeira é assim mesmo. As duas últimas guerras mundiais são um bom exemplo disso. Parecia-nos que um dos lados estava do lado do direito e, o outro lado estava errado. Na última guerra, parecia muito evidente; Hitler e Mussolini, de um lado, Grã Bretanha e Estados Unidos defendendo a democracia, do outro. Porém, quando chegamos ao verdadeiro embate e, ao seu resultado, ao final da guerra, Hitler e Mussolini haviam sido eliminados, mas, a União Soviética estava do lado das democracias. As forças que eram mais contrárias à democracia haviam se tornado suas aliadas. Essas contradições surgem toda vez que tentamos responder a esses problemas nesse nível. Então, Arjuna diz:
7. Na noite negra de minha alma, Eu sinto desolação. Em minha auto comiseração Eu não enxergo o caminho da retidão. Sou teu discípulo, venho a ti em súplica: lance tua luz no caminho do meu dever.
A “noite negra da alma” é da tradução de Mascaró. No todo, a tradução de Mascaró é extremamente boa, mas, às vezes, ele se utiliza da linguagem cristã, em detrimento do significado. R. C. Zaehner opta por: “meu verdadeiro ser está oprimido com a mácula perniciosa da compaixão”, que dá o sentido correto. Assim, “noite negra da alma” confere uma conotação algo particular aqui, mas, é significativa. Esta é de fato a situação: a “noite negra” é quando não podemos enxergar nada do caminho de retidão.
8. Pois, nem o reino na terra, nem o reino dos deuses no céu, poderia me conferir paz no fogo de aflição que assim queima minha vida.
Sanjaya começa a narrativa:

9. Tendo Arjuna, o grande guerreiro, assim desabafado, concluiu dizendo: “Krishna, não lutarei,” e, então, calou-se .

10. Krishna sorriu e falou a Arjuna, ali, entre os dois exércitos, a voz de Deus pronunciou estas palavras:

Este é um exemplo da linguagem que Mascaró utiliza, evocando as palavras da Bíblia. Elas lembram o livro do Êxodo, onde os dez mandamentos foram transmitidos no monte Sinai, com as palavras de abertura: “Deus pronunciou estas palavras dizendo”. O texto original simplesmente diz: “Hrishikesha (outro nome de Krishna) pronunciou estas palavras em meio aos dois exércitos”.

Krishna agora retira o problema da esfera do tempo e, da situação humana, dizendo:

11. Suas lágrimas se destinam àqueles que estão além das lágrimas; e, suas palavras são palavras de sabedoria? Os sábios não se lamentam pelos que vivem e; não lamentam os que morrem: pois vida e morte hão de passar.

12. Porque todos nós existimos em todo o tempo: Eu, e tu, e esses reis dos homens. E, nós existiremos em todo o tempo, nós todos por todo o sempre.
Isto nos traz o profundo entendimento de que, no nível humano, não há resposta definitiva para nenhum problema. Ele deve ser levado completamente além do nível do humano, além do tempo e do espaço e, da totalidade da condição do homem, para o nível do Atman, do Espírito.

O Espírito eterno é não-nascido e sempiterno e, este é o argumento de Krishna. Precisamos descobrir em nosso interior, essa realidade eterna. Quando a descobrirmos, poderemos retornar e enfrentar quaisquer problemas que surjam. Até que a tenhamos descoberto e, começado a viver nela, até que tenhamos começado a nos estabelecer naquela sabedoria, não poderemos encontrar nenhuma resposta. Krishna prossegue, dizendo:

13. Assim como o Espírito de nosso corpo mortal viaja através da infância, da juventude e da idade avançada, o Espírito viaja para um novo corpo: disso o sábio não tem dúvidas.

Isto nos leva à questão do renascimento ou reencarnação. A interpretação usual é a de que a alma prossegue de nascimento em nascimento. Após a morte a alma renasce em outro corpo. Encontramos um entendimento mais profundo e mais satisfatório, em um conhecido ensaio do grande erudito vedantino, Coomaraswami: o de que não é a alma que transmigra; é o Espírito, o Atman. O Espírito único está encarnado em cada pessoa. O Espírito eterno toma a carne em você e em mim e, passa por experiências no corpo e na alma de cada um de nós; ele então, prossegue e passa por experiências em outro corpo e outra vida. Toda a história da humanidade é a história desse Espírito único que passa pela experiência de todas essas diferentes vidas, conduzindo-as todas, ao final, para a realização. Esta é uma explicação possível.

Krishna prossegue ao dizer (e esse é o aspecto prático):
14. Do mundo dos sentidos, Arjuna, provém o calor e o frio e, o prazer e a dor. Eles vem e vão: são transitórios. Eleva-te acima deles, forte alma.

Estamos todos envolvidos no mundo dos sentidos, prazer e dor, calor e frio, doença e saúde e, assim por diante. Enquanto estamos envolvidos nesse estado, nunca temos paz. Esta é a esfera de formação, da transitoriedade. Porém, há algo em nós, que não é deste mundo, que não está sujeito a transições, algo eterno e, isto é o Atman, o Espírito. Devemos descobrir a eterna realidade em nosso interior e, então, poderemos lidar com os sentidos e com as aparências transitórias das coisas.
15. Aquele que não é perturbado por essas coisas, cuja alma é uma, além do prazer e da dor, é merecedor de vida na Eternidade.
Há uma parábola no Shvetashvatara Upanishad que ilustra isto. Há dois pássaros numa árvore; um deles lhe come os frutos (tornando-se envolvido) e, o outro observa (permanecendo desapegado). Quando lemos o Gita, devemos manter sempre em mente, que este é o padrão das coisas. O ser humano é corpo, alma e espírito. A alma coloca-se entre o corpo e o espírito e, em nossa situação normal, a alma, o jivatman, se inclina em direção ao corpo, em direção à matéria e aos sentidos, em direção a este mundo transitório, formação e impermanência e, tornando-se imersa nisso, desviando-se de seu caminho. Arrependimento (metanoia em Grego), acontece quando a alma muda de idéia, modifica sua atitude, volta-se e descobre o Espírito interior. Então, em lugar de estar sujeita às paixões e instintos, a alma está sujeita ao Espírito, ao poder interior, ganhando o controle do mundo dos sentidos e das paixões. Não se trata de suprimi-los, ou do seu desaparecimento em qualquer maneira; trata-se de aprender o controle interior. Assim, trata-se de descobrir como ser livre do apego, livre de nossa habitual imersão nos sentidos e nas paixões e, de despertar para o poder vivente do Espírito interior. Aqui, há uma frase impressionante:

16. O irreal jamais existe: o Real jamais inexiste. Esta verdade, de fato, foi conhecida por aqueles que podem conhecer a verdade.
O irreal é asat e, o real é sat. Isto nos lembra a famosa prece que se encontra na invocação do Isha Upanishad: “Do irreal, conduza-me ao real. Da escuridão, conduza-me à luz. Da mortalidade, conduza-me à imortalidade”. A habilidade de discernir entre o irreal e o real, é de fundamental importância no hinduísmo. Isto é precisamente o que viveka é, o discernimento da realidade eterna, do Atman, distinto do, ainda que imanente no, mundo de mudanças e processos. Ao nos relacionarmos com essa realidade eterna, alcançamos a liberdade. Este texto não significa que estejamos tentando nos evadir do tempo e do espaço; ao contrário, estamos em busca de conhecer o tempo, o espaço e a matéria, sob a luz da eternidade, do Atman, do Espírito que nos habita. Aí então, temos verdadeiro viveka, verdadeiro discernimento. Mascaró coloca isso de maneira muito bonita:

17. Entrelaçado em sua criação, o Espírito está além da destruição. Ninguém pode dar um final ao Espírito que é sempiterno.
Em toda partícula de matéria, em todo organismo vivente, em todo ser humano, em toda situação humana, o Espírito eterno está sempre presente. A ignorância, avidya, consiste em conhecer a aparência das coisas, a forma exterior da matéria e do homem e, falhar em conhecer o Espírito, a realidade interior. A sabedoria é o discernimento do eterno no temporal, o imutável no transitório. Em termos cristãos, diríamos que precisamos ver Deus em todas as pessoas e, em todas as coisas. Deus está sempre presente e, estamos cegos a isso. Alguns estão totalmente cegos, outros conseguem um vislumbre ocasional disso, mas, se pudéssemos viver como deveríamos, estaríamos sempre vendo a realidade eterna em toda manifestação temporal. Deus está presente em toda situação humana, em todo acidente, ou aparente acidente, da vida. A verdade única, a realidade única está sempre ali. Isto é sabedoria; este é o Espírito que é sempiterno.

18. Pois, além do tempo, ele habita esses corpos, ainda que esses corpos tenham fim no seu tempo; porém, ele permanece incomensurável, imortal. Portanto, grande guerreiro, continua tua luta.

19. Se um homem pensa que mata e, se outro pensa que morre, nenhum deles conhece os caminhos da verdade. O Eterno, no homem, não pode matar: o Eterno, no homem, não pode morrer.

A grande ilusão sob a qual vivemos, é a de pensarmos que, quando alguém morre, é a pessoa, ao invés do corpo, que morre. É a ilusão, maya, que nos toma e, nos faz ver a realidade exterior, como se fosse a Realidade, enquanto falhamos em ver a Realidade que está presente naquela situação. Na verdade, quando uma pessoa morre, deveríamos nos regozijar e dizer ele nasceu! Ele passou a viver. Ele passou para além desta maya, destas aparências da vida, para a vida eterna, para o mundo do Espírito. O mundo moderno é intencional em preservar a ilusão acerca da morte. O mundo acredita que a morte seja o fim e, que não devamos nunca falar dela; a morte deve ser escondida, tanto quanto possível e, quando acontece, devemos remover todos os sinais dela, tão rápido quanto possível. Nunca nos permitem enxergar através da ilusão, entender que a morte do corpo é apenas o Espírito interior descartando esta veste específica, que ele utilizou por um tempo. Chegando ao seu final, das experiências neste corpo, o Espírito passa agora para uma nova vida além da morte. Escolhemos viver na ilusão.

Neste sentido, “se um homem pensa que mata e, se outro pensa que morre, nenhum deles conhece os caminhos da verdade”. A idéia é a de que você não está verdadeiramente matando alguém, quando você o mata. Você está matando seu corpo e, libertando-o. Pode ser um grande pecado fazer isso, pois você não tem nenhum direito sobre a vida de outro homem, porém, você não está matando o eterno naquele homem. Toda a perspectiva se modifica, quando enxergamos o Espírito eterno em cada pessoa e, em cada coisa.
20. Ele nunca nasce e, ele nunca morre. Ele é na Eternidade: ele é para todo o sempre. Nunca-nascido e eterno, além do tempo, passado ou futuro, ele não morre quando o corpo morre.

Neste ponto, gostaria simplesmente de indicar a natureza da relação entre o Paramatman, o Ser Supremo, e o jivatman, o ser individual. Há muita controvérsia sobre essa relação e, as pessoas frequentemente têm a impressão de que é simplesmente o Espírito único, o Atman, que está presente em cada corpo, enquanto que a alma, o jivatman, é apenas uma aparência. Nesta teoria, ambos o corpo e a alma desaparecem ao final e, apenas o Atman permanece. Contudo, a sugestão que considero mais satisfatória é a de que a relação entre o Paramatman e o jivatman é como aquela da luz com o seu reflexo num espelho. Deus é a luz que é refletida em todo o universo criado. A criação é uma reflexão, como em um espelho, da luz única. Ela é refletida nas inumeráveis e diferentes formas da matéria e da vida. Todo ser humano, cada jivatman, é uma reflexão específica daquela divina luz única e, cada consciência humana espelha aquela consciência divina. O Espírito que é em nosso interior, é aquela luz eterna que brilha em minha consciência, em minha mente e, que se manifesta através de mim, de modo que o Espírito eterno é em mim e, eu sou nele e, isso é o que nunca morre.

No momento da morte, o corpo começa a se desintegrar e, cessa o funcionamento da psique. Não mais podemos pensar e sentir, como fazemos agora, pois o instrumento do corpo se foi. Porém, o Atman, o Espírito interior, está unido ao Espírito divino e, permanece. No momento da morte, o Espírito leva consigo todas as experiências do corpo e da alma. Nenhuma se perde. Tudo o que o indivíduo experimentou no corpo e na alma, na vida humana, é levado para essa experiência do Espírito. O Espírito é o que experiência no corpo e na alma e, leva essa experiência consigo. Se vivemos uma vida pecaminosa, então o espírito, a vida em nós, tem sido continuamente frustrado e, nossa realização no momento da morte é mínima. Por outro lado, se seguimos pelo caminho do Espírito, tanto quanto podemos, então, no momento da morte, é como se todo nosso ser florescesse. Tudo o que experimentamos no corpo, toda nossa experiência humana, se reúne no Espírito e, chega à sua realização. Assim, o Espírito é o ponto em que a totalidade do ser humano alcança um cume, por assim dizer, o ponto no qual ele alcança e toca o divino, em que o Espírito de Deus encontra o espírito do homem. É por isso que, quando alcançamos a morte, o Espírito é libertado do corpo material, de toda a seqüência temporal e, da atual ordem de consciência e, entramos na ordem do Espírito e, experimentamos a integralidade da vida em sua unidade.

Dizem que, no momento da morte, nossa vida inteira passa diante de nós. Há algumas evidências disso; por exemplo, pessoas que estavam se afogando, ou quase morrendo, experimentaram um desenrolar de toda sua vida diante de si, em um lampejo. Toda nossa experiência no corpo está contida no Espírito; nossa vida inteira ali está e, na morte, nos experimentamos como somos à luz da eternidade e, assim, nos conhecemos pela primeira vez. Este é o argumento, “que o Espírito em nós não mata, que o Espírito em nós não morre”. É o Espírito eterno em você e, em mim, que nunca morre. Ele começa uma existência temporária neste corpo, através da alma, então, ele retorna a seu estado eterno.

21. Quando um homem o conhece como não-nascido, sempiterno, imutável, além de toda destruição, como poderá esse homem matar um homem, ou fazer com que outro mate?

Uma vez alcançado esse estágio de sabedoria e integração espiritual, o indivíduo não pode matar ou, fazer com que outro mate. O indivíduo está liberto de toda a seqüência cármica, Krishna prossegue dizendo. Esta também, é uma questão da transmigração:
22. Assim como um homem abandona uma vestimenta velha e, veste uma que seja nova, o Espírito abandona seu corpo mortal e, então, veste um que seja novo.
Pelo meu entendimento, isto significa que o Espírito em mim, após passar por experiências em mim e, realizar sua existência em mim, completou agora aquela etapa, por assim dizer, e, o mesmo Espírito agora passa por experiências em outro corpo, outra alma, prosseguindo com toda a história humana. Não é minha alma individual que segue de nascimento em nascimento. É o Espírito que, tendo completado seu trabalho em mim, segue para uma outra vida. Minha vida alcançou agora sua realização no Espírito.

23. Armas não podem ferir o Espírito e, o fogo nunca poderá queimá-lo. As águas não o molham e, o vento não o resseca.
O objetivo do ascetismo é o da realização do Espírito interior e, então, o indivíduo não será afetado pelo que acontece com o corpo e, pelo que acontece com a alma. Ou melhor, o indivíduo pode ser afetado, pode sentir, mas, o indivíduo não se deixará dominar por isso. E, é isso o que se está objetivando. O argumento do Gita, não é o de procurarmos suprimir nossos sentidos e sentimentos, mas, o de desapegarmo-nos dos sentidos, dos sentimentos e da mente, de modo que tenhamos uma clara consciência alerta do que está acontecendo. Eu aplicaria isso a Jesus na cruz. Ele experimentava o sofrimento do corpo, ele experimentava o sofrimento da alma, ele se sentiu abandonado por Deus, quando gritou, “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Contudo, o Espírito em Jesus estava unido ao Pai, no Espírito Santo e, é assim que deveríamos sempre nos sentir. Em todo o sofrimento do corpo e da alma, sempre existe uma presença do Espírito que permanece imutável, acima dos conflitos.

Isso é tudo o que podemos pedir dessa experiência interior; não esperamos escapar da dor ou do sofrimento, mas, deveríamos conseguir ter um centro que seja imóvel, um centro que não seja, de nenhuma maneira, afetado por dor ou sofrimento ou, por qualquer coisa que aconteça. Como nos disse São Paulo: “Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura, nem a profundeza, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor.” (Rom 8, 38-39) Na visão cristã, é o Espírito, o Espírito Santo, que se unifica com nosso espírito e, nesse ponto somos libertados de todo conflito deste mundo.

24. Além do poder da espada e do fogo, além do poder das águas e dos ventos, o Espírito é sempiterno, onipresente, imutável, imóvel, eternamente uno.

É maravilhoso percebermos como, a partir de todo o trabalho dos rishis, de toda sua experiência da floresta, de séculos de meditação, da disciplina, do ascetismo e lutas e conflitos, eles alcançam esse ponto em que realizam o sempiterno, onipresente, imutável, imóvel Espírito. É uma enorme conquista do Espírito humano, ter alcançado esse ponto; essa foi a culminação da busca hinduísta por Deus.

Os profetas hebreus possuem outra experiência de Deus, muito diferente, ainda que análoga de muitas maneiras. Tomemos como exemplo Elias, quando se dirige à caverna. Ele se senta em uma caverna e, ali há trovão e relâmpago e um terremoto, então, há o fogo e, Deus não está no relâmpago, nem no terremoto, nem no fogo, mas numa tênue voz e, Elias, nos dizem, “cobriu-se com seu manto e, saindo pôs-se à entrada da caverna”. Aquela também, foi uma experiência de Deus, além do fogo, do terremoto e do relâmpago. Além de todas essas coisas, Elias encontra a tênue voz, essa presença interior, que é a presença de Deus e, ele desperta para a realidade.

Assim, em diferentes situações, o despertar para a realidade do Espírito acontece e, é isto o que nos possibilita transcender todas as tragédias da existência humana. É isso, o que o Gita nos revela. É uma experiência que nos foi transmitida de eras passadas e, no hinduísmo, atinge seu pináculo nesse ponto.

25. Ele está invisível aos olhos mortais, além dos pensamentos e além da transitoriedade. Saiba que ele é e, cessa tuas lamentações.
A palavra para “invisível” é literalmente o não-manifesto, avyakta. A idéia é a de que, antes de se tornar visível ou manifesto, tudo neste mundo existe no não-manifesto, em Brahman. Brahman é o não-manifesto e ele está além dos pensamentos, acintya. Isto indica uma grande dificuldade quando falamos de Brahman, do Espírito, o Eu: ele está sempre além dos pensamentos. Podemos usar palavras e pensamentos para apontar em direção a ele, mas, não podemos expressá-lo e, todas as doutrinas sagradas têm essa característica. A verdade, de fato, não pode ser expressa apropriadamente. O Espírito, o Eu, a Realidade final, está além das palavras e dos pensamentos e, além da transitoriedade. Vivemos no mundo da impermanência e da transitoriedade, porém, o mundo da Realidade final é o mundo do permanente, do imutável.

“Saiba que ele é.” Ele não se transforma. Ele não está neste mundo de transformações. Ele é. É apenas quando realizamos que “Ele é”, que cessamos de nos lamentar. É do Katha Upanishad a afirmação: “Como podemos falar dele, exceto dizendo ‘Ele é”, asti. Da mesma maneira, na tradição judaica, quando Deus se revela a Moisés ele diz: “Eu sou”. Estas são as únicas palavras que podem expressá-lo. “Eu sou”, “Ele é”.

26. Porém, mesmo que ele nascesse e renascesse repetidamente e, tivesse que morrer repetidamente, mesmo assim, homem vitorioso, cessa tuas lamentações.
Aqui também voltamos ao assunto do renascimento e, eu o interpreto no sentido de que é o Espírito no homem que renasce. É o Espírito no homem que segue de nascimento em nascimento. “Ele renasce repetidamente.”

Ele assume este corpo, esta alma, neste homem. Ele se torna este homem e, então, quando ele tiver terminado sua experiência em você e em mim, então, ele segue adiante para um novo nascimento. É o Espírito que segue de nascimento em nascimento e, não há nisso motivo para lamentações. Cada um passa a ser e, então, passa adiante.
27. Pois, todas as coisas que nascem, na verdade, devem morrer e, a partir da morte, na verdade, provém a vida. Encara o inevitável e, cessa tuas lamentações.

Esta é a nossa condição humana. Passamos, do nascimento à morte e, então, também há uma passagem da morte à vida. A sabedoria consiste na compreensão de que este é nosso estado humano e, é insensatez pensarmos na morte como um fim, um desastre, uma derrota, enquanto, na verdade, a morte é uma passagem além. O Espírito em mim passa além e, eu, como indivíduo humano, adentro aquela vida do Espírito e, o próprio Espírito passa adiante para uma outra vida.
28. Todos os seres são invisíveis antes do nascimento e, após a morte, voltam a ser invisíveis. Eles são vistos entre os dois não-vistos. Por que encontrar motivo de lamentação nesta verdade?
Aqui também, o invisível é o não-manifesto, o avyakta. Toda a criação se origina em Deus, no início, o não-manifesto. Ela é não-manifesta em Deus, no Verbo, então, ela passa à existência, para o ser manifesto. Ele se torna visível neste mundo e, cada um de nós, experiencia este mundo das manifestações e, então, no momento da morte, passamos novamente além deste mundo, para o não-manifesto, onde realizamos Deus. Poderíamos, talvez, neste contexto lembrar a Ode à Imortalidade de Wordsworth:

“Nosso nascimento é apenas um sono e um esquecimento,

A alma que surge conosco, a estrela de nossa vida,

Aqui não teve seu início,

Mas, de longe veio a nós,

Não em pleno esquecimento,

Nem em total nudez,

Mas, trilhando nuvens de glória viemos

De Deus, que é nosso lar”.

Wordsworth foi um grande místico e, teve uma percepção de muitas dessas verdades que são encontradas nos Upanishads e, que estiveram perdidas em nossa cultura por séculos. Wordsworth é alguém que nos lembra delas através de sua poesia.

29. Um o vê maravilhado e, outro nos comunica seu maravilhamento em palavras. Há alguém que ouve de sua maravilha; mas, ele ouve e, não o conhece.
A visão maravilhada expressa exatamente o mistério do Espírito, que é algo que não podemos expressar em palavras e que nos preenche de reverência e maravilhamento. É o que se denomina numinoso, isso que Rudolf Otto chamava de “a idéia do sagrado”. Isso é o que Deus é; este grande mistério. Preenche-nos de maravilhamento e, então, falamos disso com palavras de maravilhamento. Ouvimos falar disso através dos Upanishads, ou da Bíblia; todas as escrituras sagradas apresentam essas palavras de maravilhamento. Porém, “nós ouvimos e, nós não o conhecemos”. O mistério continua sempre um mistério. No mundo, conseguimos vislumbres dessa glória, que se manifesta e nos preenche com maravilhamento; estamos viajando adiante, em direção à plenitude, onde o realizaremos e conheceremos como ele é.

30. O Espírito que está em todos os seres é imortal em todos eles; pela morte do que não pode morrer, cessa de te lamentar.
Este é nosso verdadeiro ser. Cada pessoa é uma habitação desse Espírito único e, esse Espírito é imortal em cada um de nós. No momento do nascimento passamos a existir nesse Espírito e, no momento da morte passamos além, para esse Espírito. Qual, portanto, é o motivo da lamentação?

O argumento principal que o Gita tece aqui, é o da compreensão do Espírito, o Atman e, sua infiltração em toda a criação. Acredito que a melhor ilustração seja aquela do sol e da luz. O Atman, o Espírito Supremo, é como o sol no qual a luz está completamente presente, completamente realizada. Este Espírito Supremo se manifesta no mundo, assim como a luz se irradia do sol. Então, a luz se reflete em todas as diferentes formas da Natureza, em todas as diferentes cores: o verde das folhas, o marrom da terra, o azul do céu e, assim por diante, assim também, o Espírito único se manifesta, projetando-se em todas as formas da Natureza.

Shankara, se utiliza dessa mesma ilustração: assim como a luz do sol, que brilha sobre a argila, o barro e a sujeira, não se contamina, assim também, a luz única do Atman, o Espírito, não se contamina pela matéria ou, por qualquer corrupção na terra. Este é o padrão básico que deveríamos ter em mente. Deus é luz e, se manifesta na criação e, em toda a humanidade e, o nível de manifestação depende da receptividade dos diferentes elementos. Na terra, ele se manifesta sem vida; nas coisas vivas ele se manifesta sem consciência; nos seres humanos ele se manifesta na consciência. No homem mau, um homem que tenha voltado suas costas para a verdade, a luz ainda está ali, porém, obscurecida. No homem santo, no qual a luz está livre desta obscuridade, do pecado, ela se reflete com pureza. O objetivo é o de que cada pessoa deveria ser uma reflexão pura da luz única. Esse é o pano de fundo de todo o Gita.

Os próximos poucos slokas não são muito importantes. Krishna simplesmente apela para nosso senso do dever. Arjuna é um guerreiro e, é seu dever lutar em uma guerra justa.

31. Pensa, também, em teu dever, sem vacilar. Não há nada melhor, para um guerreiro, do que lutar em uma guerra justa.

O dever é o dharma e, lembremo-nos que toda a sociedade hinduísta era constituída com base no dharma. Existem quatro objetivos na vida, dentro da tradição hinduísta: kama, artha, dharma e moksha. Kama é prazer, o desfrute de si mesmo. Em segundo lugar, artha é a prosperidade; ou seja, conquistar prosperidade e propriedades e, assim, satisfazer dessa maneira a si mesmo e, a sua família. No entanto, ambos kama e artha, são controlados pelo dharma. Dharma significa o dever próprio de cada homem, seu dever em sua casta, em seu lugar na vida. Como dissemos, existem quatro castas ou varnas: o sacerdote, o guerreiro, o comerciante e o operário e, cada um precisa cumprir sua função na sociedade; esse é o dharma de cada um. Em quarto lugar existe moksha, que é a libertação final. Esta é alcançada, quando o indivíduo é libertado de todos os grilhões do apego. Krishna agora apela a Arjuna, o guerreiro, para que cumpra seu dever.

32. Existe uma guerra que abre as portas dos céus, Arjuna! Felizes os guerreiros destinados a lutar essa guerra.

É um consenso geral que, lutar numa guerra justa é um caminho para os céus. Ele é muito forte na tradição muçulmana, em que se denomina jihad, a guerra santa. Qualquer um que morra na jihad, vai diretamente para o paraíso e, a tradição cristã possuía uma mesma idéia até bem pouco tempo. Assim, esse conceito é muito difundido. Porém, isto apela a um razoavelmente baixo nível de moralidade e, neste ponto, o Gita apela ao entendimento humano comum.

33. Porém, renunciar a esta luta justa, é renunciar a teu dever e honra, é cair na transgressão.

34. Os homens falarão de tua desonra tanto agora, como nos tempos que virão. E, para um homem honrado, a desonra é pior do que a morte.
35. Os grandes guerreiros dirão que te evadiste do campo de batalha, por medo; e, aqueles que te tinham em alta estima, falarão de ti com desprezo.
36. E, teus inimigos falarão de ti com palavras de desdém, de injúria e de escárnio, desprezando tua coragem. Poderia haver, para um guerreiro, um destino mais vergonhoso?

37. Na morte, tua glória no paraíso; na vitória, tua glória na terra. Eleva-te, portanto, Arjuna, com tua alma pronta para a luta.
Assim, Krishna conclui esse nível do argumento. Ora, para alguém como Mahatma Gandhi, assim como para muitas pessoas de nossos dias, esse é um tipo muito insatisfatório de receita, pois ele não acreditava, de nenhuma maneira, nesse recurso de se lutar em guerras, mas, estamos falando de uma tradição mais antiga.

No próximo verso Krishna chega a um nível mais sério:
38. Prepara-te para a guerra, com paz em teu coração. Estejas em paz, tanto no prazer, como na dor, ao ganhar e, ao perder, na vitória ou na derrota de uma batalha. Nesta paz, não há pecado.
Isto leva o argumento de volta ao nível do transcendente, onde a guerra é a batalha da vida e, o conflito é aquele com as forças do mal. Isto deve ser empreendido com paz; com paz “no prazer, ou na dor, ganhando ou perdendo, na vitória ou na derrota”. Esta é aquela "sagrada indiferença" que, por exemplo, Santo Inácio de Loyola defendia e, que descobriremos ser um dos princípios básicos do Bhagavad Gita. Significa completo equilíbrio em face de todos os opostos, do bem e do mal, do prazer e da dor.

Há mais um ponto de interesse aqui. A palavra utilizada para "prepara-te" para a luta é yujasva, da raiz yuj, que é a mesma raiz de yoga. Normalmente yoga significa unir, mas, um significado anterior é simplesmente "preparar". Poderíamos dizer que aqui ela significa "domina-te"para a luta, ou "ordena-te" para a luta. Esta é uma utilização mais limitada da palavra, mas, ela conduz a um significado mais profundo, que aparece a seguir nos próximos slokas.

39. Esta é a sabedoria do Sankhya, a visão do Eterno. Ouve agora a sabedoria do Yoga, caminho do eterno e liberdade sem grilhões.
Sankhya e Yoga são, ambos, importantes conceitos. O Sankhya é o mais antigo sistema hinduísta de metafísica. Havia seis darshanas, ou sistemas filosóficos. Após o período dos Vedas, houve o período dos épicos, os ithihasas, entre 500 aC e 500 AD aproximadamente e, é a este período que pertencem esses seis darshanas. A palavra darshana vem da raiz drs, que significa "ver"; "pontos de vista" como são algumas vezes descritos. Esses seis darshanas, cobrem todos os reinos do conhecimento. Os dois primeiros são Nyaya e Vaisheshika. Nyaya é lógica pura. É importante notar que neste estágio, cerca de 300 aC, havia um sistema de lógica na Índia, praticamente tão completo quanto, por exemplo, o de Aristóteles no Ocidente. A lógica sempre ocupou um lugar importante na filosofia indiana. O segundo, Vaisheshika é cosmologia; ou seja, uma filosofia da Natureza, que incluía uma teoria atômica. Aqui também, precisamos nos lembrar que nessa mesma época, Demócrito, na Grécia antiga, propôs sua teoria atômica. É muito interessante que, ao mesmo tempo e, aparentemente de maneira independente, os gregos tiveram idéias similares. Não se estudam muito esses sistemas antigos hoje em dia, mas, são importantes, como fundamento para a filosofia. Surgem então, o Sankhya e o Yoga. Sankhya é a teoria a que Aristóteles denominava metafísica. Ela trata da constituição fundamental do universo. Baseia-se nos dois princípios de purusha e prakriti. purusha é o Espírito, consciência; prakriti é a matéria, natureza. purusha é masculino e, literalmente significa, o macho, e, prakriti é feminina. Toda a criação passa a existir a partir da união do masculino e do feminino. Os chineses denominam esses princípios yang e yin. Na filosofia grega eles, até certo ponto, correspondem à forma e à matéria de Aristóteles, ainda que não sejam precisamente os mesmos.

Quando Krishna diz "esta é a sabedoria do Sankhya", ele quer significar que esse Espírito Eterno, que ele descreveu, é o purusha do Sankhya, o Espírito, a consciência. Agora ele prossegue descrevendo o Yoga. Yoga é a disciplina prática, da qual, o Sankhya é a teoria. Uma outra tradução é: "Você ouviu a teoria; agora Eu lhe direi da prática" (Z), e, é aproximadamente isso o que significa.

Em um estágio mais antigo, a doutrina do yoga era a de que o purusha é o Espírito puro, consciência, e, que prakriti é a matéria, natureza. Como resultado de kama ou, do desejo, purusha se misturou a prakriti, a natureza. O Espírito e a consciência se confundiram com a matéria. O objetivo do yoga é o de separar purusha, a consciência, do corpo, da matéria e, alcançar o estado de kaivalya, de separação, de isolamento. É uma visão muito limitada, mas, é interessante e, esse era o objetivo da meditação no sistema mais antigo do yoga. Nos sistemas de yoga originais, a intenção é a de separar a mente, ou Espírito, ou consciência, da matéria e do corpo. No Gita, desenvolve-se uma compreensão mais aprofundada do yoga. O que o Gita concebe como a sabedoria do Sankhya, é a existência do Espírito eterno e único, que está presente em tudo e, que é o fundamento de toda a realidade, enquanto o caminho do Yoga é o meio de união com este Espírito único, pela integração de toda a personalidade. Esse é um entendimento muito mais profundo.

40. Neste caminho, nenhum passo se perde e, não há perigos. Mesmo um pequeno progresso, é libertação do medo.

Com relação a esta liberdade do medo, Zaehner cita o Katha Upanishad que diz: "este universo inteiro provém dele e, sua vida queima através deste universo inteiro. Aquele Brahman é um grande temor, como um trovão que se eleva. Aquele que, assim, o conhecer, torna-se imortal". A idéia é a de que o temor de Brahman move toda a criação. É parecido com o temor do Senhor, no Velho Testamento. Este temor é o que Rudolf Otto descreve como mysterium tremendum et fascinans. O mistério de ser em toda a criação é algo tremendo, algo que evoca um sentimento de reverência, de mistério, de maravilhamento. E, o mesmo mistério tem uma característica de duas faces, ambas nos atraindo e evocando temor. A natureza de Deus tanto é repleta de temor, quanto repleta de maravilhamento. A carta aos Hebreus diz: "Nosso Deus é um fogo que consome". Existe algo terrível em Deus, mas, também, algo infinitamente atraente. É isto que se quer dizer com o grande temor.

41. Aquele que trilha este caminho possui um pensamento e, este é o Fim de sua determinação. Porém, os pensamentos de um homem a quem falta determinação, são intermináveis e com muitas ramificações.
As traduções de Annie Besant e de Bhagwan Das falam da "razão determinada". Isto é o buddhi. Krishna nos diz que o buddhi, a inteligência, é única e unidirecionada. O buddhi é o ponto de contato com o Ser Supremo, o Atman. O espírito manifesta-se, antes de mais nada, em buddhi, então, em ahankara, o ego e, em terceiro lugar em manas, a razão inferior. Normalmente, vivemos em manas, a razão inferior, onde a luz única se reflete em todas as variedades da Natureza e, ali é onde a mente se distrai. A mente está em constante movimento, constantemente nessa consciência que discerne, pulando de uma para outra coisa, através da razão discursiva. Esta razão discursiva está conectada ao ahankara, o ego, a consciência de si, porém, além de manas e, além de ahankara, está buddhi. É a pura luz da inteligência. Está mais próxima do nous de Aristóteles e, do intellectus de São Tomás de Aquino, por ser distinta da ratio, a razão. manas é a razão inferior que segue de argumento em argumento, o intellectus é a faculdade que capta primeiramente os princípios e, isso é o que buddhi é. buddhi é a inteligência pura, que recebe a luz e, então, a difunde. Tudo depende de se alcançar o ponto de buddhi, em que nos tornamos ekagrata, unidirecionados. Precisamos nos recolher, tanto dos sentidos, que desviam nossa atenção para o que nos rodeia, quanto de manas, a mente que opera através dos sentidos, para nos tornarmos unidirecionados no ponto de buddhi; então, estaremos abertos à luz do Atman. Neste ponto, ele nos diz que buddhi deve ser uno em sua determinação; deve estar fixado neste ponto único e, este é o grande objetivo do Yoga.

Se isso não é feito, a mente está confusa. Ela vagueia todo o tempo, de uma para outra coisa, em um constante estado de distração. O unidirecionamento é o primeiro princípio do Yoga. Krishna então, descreve a pessoa que não possui determinação.
42. Existem homens que não possuem nenhuma visão e, ainda assim, eles emitem muitas palavras. Eles seguem os Vedas à risca e, eles dizem: "nada há além disto".

É freqüente a repetição, tanto no Gita, quanto nos Upanishads, de que o mero conhecimento dos Vedas não é suficiente. Os Vedas são as Escrituras sagradas e, eles contém a revelação, porém, o mero conhecimento exterior deles, nunca é o conhecimento final.

Há uma estória famosa no Chandogya Upanishad, em que o menino, Svetaketu, à idade de 12 anos sai para estudar os Vedas. Seu pai lhe diz, "por direito de nascimento você é um brâmane, mas, você não será um verdadeiro brâmane, até que você conheça os Vedas, assim, você deve estudar". Ele vai e estuda os Vedas e, à idade de 24 anos, após 12 anos de estudo, ele volta, muito orgulhoso de si, muito presunçoso e, seu pai lhe pergunta, "Agora que você estudos todos os Vedas, você pode me contar acerca daquele pelo qual podemos ouvir o que não pode ser ouvido e, perceber o que não pode ser percebido e, conhecer o que não pode ser conhecido?" E, o rapaz disse, "Não, eles nunca me ensinaram isso." O que o rapaz não entendeu, é a essência dos Vedas: ou seja, o Atman, o Espírito que inspira os Vedas. Podemos aprender todos os Vedas, sem discernir sua essência, ou estudarmos a Bíblia do começo ao fim, sem conhecermos o Verbo de Deus. Só a iluminação do Espírito nos possibilita chegar ao verdadeiro conhecimento. Assim, com os Vedas. O indivíduo poderá estudar todos os Vedas, mas, sem essa compreensão, sem essa sabedoria, o indivíduo não entenderá seu significado interior, ou descobrirá a verdade. Assim, é por isso, que se diz que o mero conhecimento dos Vedas, não será de utilidade. Ademais, os Vedas são constantemente associados com sacrifícios, o sacrifício do fogo e, a tradição posterior é a de que aqueles que seguem uma religião ritualística estão, na verdade, sempre buscando benefício próprio. Eles estão todos agindo motivados pelo desejo. Eles rezam por prosperidade, pelos filhos, pela riqueza, pela boa sorte, ou, na melhor das hipóteses, eles rezam pelo paraíso, por uma boa recompensa, por uma vida feliz após a morte. Esses, são todos desejos egoístas. Eles podem obter seus desejos, mas, eles nunca estarão satisfeitos. Eles não conseguirão moksha, ou seja, a libertação espiritual, pois eles ainda estão agarrados ao ego, ainda desejam a satisfação própria e, portanto, Krishna diz:

43. A alma deles está deturpada pelo desejo egoísta e, seu paraíso é um desejo egoísta. Eles possuem preces para os prazeres e o poder, cuja recompensa é o renascimento terrestre.

44. Aqueles que amam os prazeres e o poder, ouvem e seguem suas palavras: eles não têm a determinação de jamais serem um com o Uno.
O entendimento hinduísta, é o de que, quando buscamos o paraíso, como recompensa de nossas boas ações na terra, obtemos nossa recompensa no paraíso e, então, voltamos novamente à terra. Não alcançamos o objetivo. Não fomos além de nosso ego. Enquanto ainda vivemos em nosso ego, mesmo que seja o mais espiritualizado dos egos, continuamos repletos de desejo, que é, na verdade, a busca do si-mesmo; não alcançamos libertação. Assim, não atingimos este objetivo final, que ele descreve como samadhi. samadhi é o estado final do yoga, em que estamos completamente unidos com o Uno. Esta, portanto, é uma bastante boa tradução, quando diz: "eles não têm a determinação de jamais serem um com o Uno." Unido àquele Uno, em samadhi, esse é o verdadeiro objetivo.
45. O mundo dos Vedas, é o dos três gunas da Natureza. Eleva-te para além dos três gunas, oh Arjuna! Vive na Verdade eterna, além dos pares de opostos terrenos. Além dos ganhos e posses, possui tua própria alma.

Já vimos que, no Sankhya, os dois princípios fundamentais são purusha e prakriti. Toda a criação veio a existir por meio desta união de purusha e prakriti. prakriti, a natureza, é constituída por três gunas, literalmente "fibras", que são sattva, rajas e tamas. Tudo na natureza se compõe destes três constituintes: tamas é a escuridão, a inércia, o terreno: rajas é o fogo, a paixão, o entusiasmo e, sattva é a luz, a pureza, a inteligência. Quer seja nas coisas materiais, ou nos seres humanos, estes três constituintes estão sempre presentes. Este é o mundo dos Vedas, o mundo da realidade criada, não o mundo do Ser incriado, do Atman. Krishna diz "eleva-te para além dos gunas". O indivíduo deve ir para além da natureza, para o mundo do Espírito. O indivíduo deve transcender as dualidades, os dvandvas, prazer e dor, ganhos e perdas, honra e desonra. O mundo da Natureza é o mundo das dualidades. Há sempre este conflito entre os opostos e, apenas quando passamos além da natureza, além da criação, é que descobrimos o Uno, que está além dos pares de opostos. É ali que, na meditação, devemos fixar nosso olhar, no Uno.

46. Para o vidente do Supremo, os Vedas têm a mesma utilidade de uma cisterna de água próxima a uma imensa torrente de água que se espalha por toda parte.

Este é um verso que tem aborrecido muitas pessoas, mas, que é bem claro. Os Vedas são Escrituras reveladas; elas são as Escrituras mais sagradas para o hinduísta e, no entanto, ele diz que todos esses Vedas são como uma cisterna de água onde a água flui por toda parte. Quando o indivíduo vê o Supremo, quando ele alcança o conhecimento do Uno, do próprio Verbo, então, todas as palavras escritas se tornam completamente secundárias ou mesmo desnecessárias.

Essa é uma tradição comum entre os hinduístas. Eles dizem que um sannyasi deveria estar além dos livros, que ele deveria ter digerido todo o conhecimento dos livros. Podemos dizer o mesmo do Verbo de Deus na Bíblia. Quando meditamos na Bíblia, tentamos descobrir o Verbo de Deus. O Verbo de Deus está em todas essas palavras, todas essas imagens e conceitos. Por meio de todos esses conceitos e imagens, devemos encontrar o Verbo em nosso interior. Experienciamos interiormente o Verbo, através do Espírito Santo. Então, não mais precisamos de todas essas Escrituras, de todas essas palavras. A maioria das pessoas, talvez não venham a atingir esse estado, mas, ainda assim, isso é muito importante. É tão freqüente, a idolatria da Bíblia ou dos Vedas, por meio do apego às palavras. Nessas Escrituras sagradas, cada palavra é preciosa, mas, podemos passar nossa vida toda meditando sobre essas palavras, sem jamais alcançar o próprio verbo, a Verdade, que se manifesta naquelas palavras.

Portanto, essa é a idéia deste verso: "para o vidente do Supremo, a utilidade dos Vedas é como a de uma cisterna de água próxima a uma imensa torrente de água que se espalha por toda parte." Isto é, para o indivíduo que tem o conhecimento de Brahman. Zaehner se refere à mesma idéia que aparece no Mundaka Upanishad, onde se diz: "Imaginando que os rituais religiosos e as doações da caridade sejam o bem final, os insensatos não encontram o supremo caminho. Na verdade, eles recebem a recompensa de suas pias ações no alto paraíso, mas, de lá caem, vêm à terra, ou mesmo abaixo para as regiões inferiores. Porém, aqueles que na pureza e na fé, habitam a floresta, que possuem sabedoria e paz e, não anseiam por posses terrenas, aqueles em radiante pureza passam pelos portões da suprema habitação, onde o Espírito é na eternidade." Aquele é o sannyasi, que vai para a floresta para meditar e, encontra o Espírito eterno, o Eu imutável.

Chegamos agora à doutrina prática do Gita. Krishna aconselha Arjuna na batalha da vida e, a primeira coisa que ele diz é: passa além das dualidades, bem e mal, certo e errado, prazer e dor, ganhos e perdas e, descobre o Absoluto, o Eterno, o Uno que está além de todas as coisas, aquele Espírito que é em você, em todos e, em tudo. Esse é o assunto principal do Gita. Na teoria mais antiga, o sannyasi gradativamente renunciava à ação. Ele começava por se retirar da atividade mundana e, descobria o Espírito interior e, então, se recolhia ainda mais, até se tornar completamente desapegado de todos e de tudo, tendo finalmente renunciado a toda ação. O ensinamento do Gita, é o de nos desapegarmos de tudo e de todos, mas, então, nessa liberdade do Espírito, precisamos estar prontos para fazer o que quer que nos seja exigido. Na verdade, é isso o que estamos tentando aprender.

O desapego do mundo dos sentidos, da atividade da mente racional, dos Vedas, em outras palavras, de todas as escrituras, todos os rituais exteriores, faz-se necessário, para que possamos despertar para o Espírito, o Atman interior. Porém, quando alcançamos esse Espírito, esse Espírito é energia; ele é vida e inteligência e, também é amor. À luz desse Espírito, somos competentes para agir. O Espírito é uma energia dinâmica, que nos inspira a agir, a servir, a trabalhar e, o trabalho executado pelo Espírito interior, está longe de nos acorrentar, ele nos liberta. Agora Krishna chega à doutrina básica.
47. Coloca teu coração em tua ação, mas, jamais na recompensa. Não trabalhes por uma recompensa, porém, jamais cessa de fazer teu trabalho.
Esse é o ensinamento fundamental do Gita. Devemos fazer nosso trabalho, lutando na batalha, fazendo qualquer trabalho que nos seja exigido, porém, sem buscarmos recompensa; ou seja, devemos nos livrar de todo egoísmo. Naturalmente, o ego sempre busca uma recompensa; o que quer que faça, o faz por um propósito egoísta. Se pudermos remover o propósito egoísta, sem buscar recompensa, então, nosso trabalho não mais nos acorrenta. Essa é a condição básica. Veremos como o Gita gradativamente desenvolve este tema aprofundando-o, mas, aqui, o entendimento básico já está claro.
48. Faz teu trabalho na paz do Yoga e, livre de desejos egoístas, sejas indiferente ao sucesso e ao fracasso. Yoga é uniformidade da mente, uma paz que é sempre a mesma.

samatva é uniformidade da mente, equanimidade. Esse é o fruto do yoga. Este é um princípio muito importante e, é também muito prático. Poderemos ter algo a ser feito e, isso pode muito bem ser um bom trabalho, digamos que seja um serviço em um hospital, ou uma escola, ou um trabalho social, porém, é muito importante que não o façamos pela recompensa que ele acarreta. Devemos dedicar o fruto de nosso trabalho a Deus e, isso significa que, se tivermos sucesso, então, estaremos felizes, porém, não exaltados por isso, enquanto que, se fracassarmos, poderemos lamentar, sem contudo nos deprimirmos. Se o indivíduo trabalha com o ego, ele se super-excita com o sucesso e, se deprime com o fracasso e, essa reação é o que está errado. Suponho que quase todos trabalham com algum grau de egoísmo, mas, sempre poderemos testar o grau de nosso egoísmo pela intensidade de nossos sentimentos. Caso nos sintamos realmente deprimidos quando fracassamos ou, caso nos sintamos muito estimulados quando temos êxito, isso demonstra que nosso ego se encontra muito atuante. Se o indivíduo dedica tudo a Deus, então o indivíduo se regozijará no êxito e lamentará o fracasso, mas, não se deixará perturbar por isso. O indivíduo manterá esse samatva, essa uniformidade da mente.

Há um grande perigo em muitas das atividades modernas das pessoas que se voltam para o serviço social, buscando aliviar a pobreza e a doença. Elas sentem que devem fazer todo o possível para melhorar as condições e, assim, elas se dedicam ao serviço social procurando, por exemplo, erradicar a pobreza de uma determinada área. Elas trabalham duro nisso e podem ter algum sucesso, mas, é igualmente possível que elas fracassem, ou encontrem obstáculos insuperáveis. Caso todo seu interesse, ao realizar o trabalho, seja o de ter sucesso, elas podem vir a se tornar profundamente deprimidas e desiludidas e, talvez até por fim desistam de todos os esforços. Ao contrário, a maneira correta de empreendermos qualquer trabalho, é a de entregá-lo todo a Deus e, não nos perturbarmos indevidamente, seja pelo fracasso, seja pelo sucesso. Essa é a condição essencial de qualquer trabalho.

O perigo oposto, é o de que se pregamos esta doutrina de indiferença aos resultados, poderemos gerar o entendimento de que o trabalho não tem importância, encorajando outros a trabalhar sem entusiasmo, porém, isso, é claro, é um equívoco. O argumento é o de que o indivíduo deva colocar todo seu coração no trabalho, fazendo tudo o que possa e, então tudo seja entregue a Deus e, caso fracasse, o indivíduo não seja dominado pelo pesar. Esta foi também a lição ensinada por Santo Inácio, a que chamava "santa indiferença". Há uma história famosa ligada a Santo Inácio: perguntaram-lhe o que ele faria, caso o papa viesse a abolir a Companhia de Jesus (o que efetivamente acabou ocorrendo mais tarde)? Inácio disse que, após meia hora de meditação, ele o aceitaria com completa equanimidade. Isto é sabedoria.

49. O trabalho que se faz por uma recompensa é muito inferior ao trabalho feito no Yoga da sabedoria. Busca a salvação na sabedoria da razão. Quão pobres, os que trabalham por uma recompensa!
O "yoga da sabedoria" é buddhi yoga, ou "exercício espiritual da alma, ou integração por meio da alma" (Z).

Sinto que, no trabalho que empreendemos, seja este o principal princípio. O trabalho deve provir do centro mais interior de nosso ser, onde estamos unidos a Deus. Só então o trabalho é significativo e frutífero e, os resultados alcançados não nos perturbam. Porém, se o trabalho é feito simplesmente por fazer, como sói acontecer, então, será igualmente possível que ele acarrete benefícios, assim como, prejuízos. Assim, o trabalho realizado pela recompensa é muito inferior a este yoga da sabedoria, buddhi yoga. Busca pois a salvação neste buddhi yoga.

50. Nesta sabedoria, um homem vai além do que é bem feito e do que não é bem feito. Prossiga, portanto, para a sabedoria: Yoga é sabedoria na ação.
Uma outra tradução é: "Unido à razão pura de buddhi, o indivíduo abandona aqui ambas as ações, boas e más. Portanto, dedica-te ao Yoga" (B&D). Esta tradução é um pouco difícil. "Ir além" sugere que descartemos ambas as boas e as más ações e, pode levar ao equívoco, mas, a idéia básica é a de que bem e mal pertencem às dualidades, dvandvas, e o bem, neste sentido, é sempre um bem limitado. Enquanto estamos buscando o bem limitado e o mal limitado, não alcançamos o objetivo; precisamos ir além dos objetivos limitados para alcançar o Uno que está além. Nesse sentido vamos além do bem e do mal. Porém, pode-se dar uma interpretação muito perigosa, como tem acontecido freqüentemente. Há quem diga que o yógui, se completamente emancipado, poderá fazer qualquer coisa sem que seja pecaminosa. Que ele está acima do bem e do mal. Havia um sadhu muito interessante, um sul-africano, que visitou nosso ashram muitas vezes. Ele era um homem admirável que, naquele tempo, já era sadhu havia doze anos. A princípio era muito respeitado por todos os devotos hinduístas, mas, ele possuía uma teoria, segundo a qual, uma vez atingida a consciência pura, o indivíduo estaria livre de todas as restrições morais. Ele diria: "Não vejo por que não deveria matar alguém, se motivado pelo espírito; eu estaria certo em matar aquela pessoa". Dessa maneira, na verdade, frequentemente se interpreta o pensamento de Nietzsche. Muitos dos seus devotos hinduístas começaram a abandonar o sadhu. Este é um tipo de perversão que ocorre facilmente. Quanto maior a elevação alcançada, mais sérias são as perversões que ocorrem e, por isso, eles sempre dizem que o caminho yóguico é como o fio da navalha. O indivíduo alcança um ponto em que poderá facilmente cair do mais alto para o mais baixo. É uma experiência muito comum. O mesmo se aplica à sensualidade. Existem alguns yóguis que dizem ser completamente livres para se comprazer com as mulheres. Isso não afeta seu Atman. Eles alcançaram esse nível que está além, de modo que eles podem desfrutar. Porém, aqui não é este o significado. Trata-se simplesmente de ir além da dualidade da boa ação e da má ação, além de todas as limitações.

Chegamos agora a esta frase interessante: "Prossegue, portanto, para a sabedoria: Yoga é sabedoria na ação", ou, em outra possível tradução: "destreza na ação". Yoga é destreza na ação. Há uma bela ilustração disto em uma das estórias de Chuang Tzu. Havia na China um famoso açougueiro que cortava suas carnes com um machado. Ele dizia nunca ter precisado afiar seu machado de dezessete anos. A lâmina estava absolutamente perfeita, após todos esses anos, pois toda vez que ele a usava, a lâmina sempre descia entre as juntas da carne, sem nunca atingir nenhuma resistência que pudesse torná-la cega. Assim, ele cortava sua carne, com um maravilhoso balanço de seu machado e, tudo se repartia perfeitamente. O feito chegou aos ouvidos do Imperador que veio para vê-lo e, perguntou-lhe como é que ele conseguia cortar a carne dessa maneira. O açougueiro então respondeu: "Antes eu medito sobre o Tao. Levo minha mente à harmonia com o Tao e, então ajo espontaneamente, a partir do Tao interior, não a partir de meu próprio esforço". O Tao é a ordem da natureza, o ritmo do universo. O homem havia se colocado em sintonia com este ritmo universal. Aquilo é destreza na ação. Aquilo é o yoga perfeito, quando nossas ações estão perfeitamente sintonizadas, perfeitamente harmoniosas, perfeitamente espontâneas. Outro exemplo é o do Zen na arqueiria. Há um livro famoso de um alemão que foi ao Japão para estudar o Zen na arte do arco e flecha, para aprender como soltar a flecha do arco, de maneira apropriada1. Ele estudou durante seis anos. Toda vez que tentava, seu mestre dizia Não! Ele estava sempre colocando seu ego na ação, empurrando a flecha de algum modo. Só depois de seis anos, de repente ele apontou e a flecha simplesmente voou da corda e ele se sentiu a si mesmo como se fosse um com a flecha e o alvo. Então, o mestre disse "Agora você aprendeu". Aquela é a arte perfeita, a de conseguir estar perfeitamente calmo, imóvel por dentro. A ação flui do interior, em harmonia com a ordem da natureza. Caso todas as ações fossem assim, seríamos todos perfeitos.

Porém, de fato, o ego está em tudo o que fazemos, bem ou mal. Deparamo-nos freqüentemente com isso, em pessoas muito eficientes. Elas são muito boas em administração e, em todos os tipos de organização, mas, elas podem ser terrivelmente exigentes, pessoas difíceis de se conviver. Tudo é feito por meio do ego. Por outro lado, existem pessoas que podem dirigir grandes negócios, ou um hospital, ou fazer trabalhos complexos e, parecem estar sempre no controle de tudo, ainda que nunca se coloquem em evidência. Todos sentem estar sendo apoiados por elas. Aquilo também é yoga na ação. Esta é a grande arte: “Ir, portanto, para a sabedoria. Yoga é destreza na ação.” A tradução não é muito acurada. Literalmente, trata-se de yogaya yujyasva, “subjuga-te ao yoga”. Une-te completamente, pois yoga é destreza na ação. Quando nos tornamos um, completamente, a ação é perfeita. Enquanto houver qualquer divisão em nós, haverá conflito em nossas ações. Krishna conclui esta parte de seu discurso, com os seguintes versos:

Em união com a sabedoria, os videntes renunciam às recompensas de seu trabalho e, libertos dos grilhões do nascimento, eles se dirigem à morada da salvação.

Esses homens sábios, controlados e integrados, que são buddhi yukta (unidos a seu buddhi), que renunciaram aos frutos de suas ações, eles serão libertos de seu cativeiro (Z). Eles estão livres do cativeiro deste mundo e, eles se dirigem à morada da salvação, ou, literalmente, à região que não conhece o mal. O têrmo é anamaya, a região onde não há dor.


Quando tua mente deixar para trás a floresta escura da ilusão, tu te dirigirás para além das escrituras, tanto as do passado como aquelas que ainda estão por vir.

A maioria das escrituras é desconcertante e, os Vedas são muito desconcertantes. Há variadas e diferentes correntes de pensamento neles e, àquela época, havia surgido muita confusão e conflito, assim como, no caso da Bíblia. Muitas seitas se formaram com base na Bíblia, a Bíblia pode confundir um indivíduo, tanto quanto qualquer outra coisa no mundo. Portanto, quando desconcertado por todas essas escrituras, “dirija-se para além das escrituras, as do passado e, as que ainda estejam por vir”. A escritura é shruti, aquilo que se ouviu, ou seja, a revelação. A idéia é a de que o indivíduo não mais dependa de qualquer tipo de revelação exterior, mas, que esteja unido ao Espírito interior.
53. Quando tua mente, que pode estar vacilante nas contradições de muitas escrituras, estiver inabalável na contemplação divina, então, o objetivo do Yoga será teu.

“Quando tua mente estiver inabalável na contemplação divina”, literalmente, “inerte e silente, imóvel em samadhi”. Samadhi, é um dos quatro mais elevados estágios do Yoga de Patañjali. Há pratyahara, o recolhimento dos sentidos, recolher-se em si mesmo; dharana, a concentração da mente em uma coisa; dhyana, quando a meditação é um fluxo contínuo e unidirecionado da mente, a contínua adesão ao Uno; e, finalmente, samadhi, a absorção, é quando estamos completamente unidos ao Uno. Esse é o estágio final. Esse é o estágio da contemplação, é quando a alma, outrora desconcertada pelas escrituras, permanece inerte e silente. Essa quietude, o ponto de imobilidade, é samadhi. “Então, o objetivo do Yoga será teu”. O têrmo “Yoga” pode ter muitos sentidos. No fim, ele passa a significar o estado de união. Essencialmente, Yoga é união, mas, os passos que damos para nos aproximarmos dele também são Yoga.

Zaehner ressalta existirem quatro ou cinco significados do têrmo “Yoga”. Em primeiro lugar ele é prática, como oposição à teoria, Sankhya. Em segundo lugar ele gosta de descrevê-lo como um exercício espiritual. Yoga é uma sadhana, uma prática espiritual. Depois, ele é o controle ou a integração, manifestado através do exercício espiritual; depois, como resultado disto, é a mesmice, a indiferença, a eqüanimidade; e, finalmente, ao terem sido encontrados o controle e a harmonia perfeitos, é a destreza na ação; é o Yoga na ação. Essa é a plenitude do Yoga.

Chegamos agora a uma parte muito importante. Aqui se descreve o homem de firme sabedoria, sthita prajna. Arjuna pergunta:
54. Como é o homem de sabedoria tranqüila, aquele que permanece em contemplação divina? O que são suas palavras? O que é seu silêncio? O que é seu trabalho?

O têrmo para contemplação aqui é samadhi; pode ser traduzido como “imperturbável na contemplação”, “estável no samadhi”. Samadhi é o que há de mais próximo àquilo que significamos por contemplação. A contemplação é a experiência de Deus. A mera meditação é um esforço humano, o movimento discursivo da mente que reflete sobre Deus, enquanto que a contemplação é a experiência de Deus que nos une a Ele.

Krishna descreve este homem de sabedoria, em um trecho que se tornou um clássico da sabedoria espiritual e, um resumo dos ensinamentos do Gita.
55. Quando um homem renuncia a todos os desejos que chegam ao coração e, pela graça de Deus, encontra a alegria de Deus, então, sua alma realmente encontrou a paz.

“Pela graça de Deus, encontra a alegria de Deus”, trata-se mais de uma explicação, do que de uma tradução. A versão literal é muito mais interessante. Ela é: “quando um homem abandona todos os desejos do coração e, está satisfeito no Eu pelo Eu” (B & D). Isso é tão mais rico em significado, pois, todo o ensinamento do Gita é o de aprendermos a viver no interior de nosso coração, em nosso Eu interior e, quando abandonamos todos os desejos do coração, toda a progênie de kama, isto é, os desejos instintivos, então, nas profundezas do interior de nosso ser, descobrimos nosso Espírito, que é o Espírito de Deus em nós. Na verdade, acredito que isso seja similar à paz de Deus e, à alegria de Deus, tal qual traduzido por Mascaró, mas, de modo geral, trata-se de terminologia e pano-de-fundo diferentes. Primeiramente, precisamos superar o desejo, para atingir esse estado. O desejo, kama, é o grande obstáculo. Kama pode ser traduzido como desejo egoísta, porém, ele envolve a totalidade da natureza do desejo. Diz-se que o ser humano possui três corpos ou, envoltórios (koshas). Primeiramente, há o sthula sharira, o corpo físico, em seguida, o sukshma sharira, o corpo sutil e, finalmente, o manokosha, a mente, ou, o corpo mental. O corpo sutil, às vezes, é chamado de corpo-dos-desejos e, é dele que devemos nos libertar. Não se trata de suprimirmos esses desejos, devemos estar completamente livres deles. Enquanto estivermos sendo estimulados pela natureza do desejo, seremos sempre escravos de nossos próprios desejos, nossos próprios apetites, nosso próprio ego. Ao abandonar esses desejos, então, o indivíduo estará satisfeito no Eu pelo Eu, então, o indivíduo será denominado “estável na mente”, prajna pratishtita. Intraduzível, é uma bela frase. Ele possui a “sabedoria firme”, de que Zaehner nos fala. Equivale a dizer, uma sabedoria, uma compreensão, uma atitude em relação à vida, que seja firme, constante em todas as circunstâncias.

56. Aquele cuja mente não se perturba por aflições e por prazeres, que não anseia, que está além da paixão, do medo e da raiva, ele é o sábio cuja mente não é vacilante.

Encontramos aqui a mesma idéia: imperturbado pela aflição, sem anseio por prazer. Prazer e dor são as dualidades. Todos correm atrás do prazer, todos procuram evitar a dor. Até que tenhamos chegado além dessas reações espontâneas, não alcançaremos nenhuma paz. Ao prazer, segue-se a dor. Este é o reino das oposições intermináveis.

O ideal é que não sejamos nem perturbados pela aflição, nem apegados à busca do prazer, de nenhuma maneira. Isso é extremamente importante, para que sejamos livres da busca pelo prazer. Isto não quer dizer que desprezamos o prazer. Todo prazer é aproveitado, ao acontecer, porém, não o agarramos e não o perseguimos. Quando corremos atrás do prazer, poderemos obter algo dele, porém, imediatamente obtemos uma reação de dor. Devemos estar “além da paixão, do medo e da raiva”. Estas são as três emoções básicas. Em sânscrito, elas são raga, bhaya e kroda. Raga, é paixão ou desejo, bhaya é o medo e, kroda é a raiva. Existe a mesma divisão em São Tomás de Aqüino, que descreveu as três emoções básicas como sendo: concupiscientia, o desejo, ira, a raiva e timor, o medo. Aquelas são as paixões básicas e, elas devem ser silenciadas. Enquanto formos estimulados pela concupiscência, esta ânsia por prazer, não seremos livres. O primeiro instinto do bebê, é o instinto pelo prazer, pelo calor e conforto do seio materno. Quando ele se sente privado dessas coisas, ele se zanga. O chôro do bebê, é uma expressão de sua zanga. Todos nós passamos por isso; buscamos o prazer e, ficamos incomodados ou zangados, quando privados dele. Algumas pessoas passam toda a vida dessa maneira, tal como bebês, buscando seu prazer e, muito zangadas, caso quem quer que seja, tente privá-las dele. Juntamente ao desejo e à raiva, há o medo, porque, enquanto estivermos buscando o prazer e, nos incomodando quando formos privados dele, estaremos sempre com medo de que nosso prazer nos seja tomado. Estamos em um perpétuo estado de perturbação emocional e, isso é desastroso. O homem de sabedoria firme, está além dessas perturbações.

57. Aquele que, em toda parte, está livre de todos os liames, que nem se regozija, nem se lamenta, se a sorte lhe é boa ou má, ele é de uma sabedoria serena.

O segredo dessa “sabedoria serena”, é o de estar livre de liames, de estar desapegado. Isto não significa que não sintamos prazer ou aflição, ou, que não sejamos afetados pelo sucesso ou o fracasso, mas, que não sejamos perturbados, seja por um, ou pelo outro. Devemos estar desapegados de nosso ego, nosso “eu”, de modo a aceitarmos tanto o prazer, como a dor, o sucesso e o fracasso, com eqüanimidade.
58. Quando, ao se recolher, ele afasta todos os seus sentidos dos apelos dos prazeres sensuais, assim como uma tartaruga recolhe todos os seus membros, então, a sua é uma serena sabedoria.

O exemplo da tartaruga que recolhe seus membros, quando ciente do perigo, é uma ilustração comum. Os sentidos devem estar sob controle. Somos livres para desfrutarmo-nos, mas, os sentidos devem sempre estar sob controle, para que eles possam ser afastados de seus objetos, quando necessário.

59. Da alma austera, desaparece o prazer sensual, mas, não os desejos. Até mesmo os desejos desaparecem, quando a alma tiver visto o Supremo.
61. Trazendo-os todos à harmonia do recolhimento, permita que ele se sente em devoção e união, que sua alma encontre repouso em mim. Pois, quando seus sentidos estão em harmonia, então, a sua é uma serena sabedoria.

A única maneira de superar esta tendência é a de trazer os sentidos à harmonia do recolhimento. Este é o trabalhodo Yoga. Yoga é união. É a união entre a mente e os sentidos, mas, ainda mais profundamente, a união entre a alma e o Espírito. O Gita apresenta aqui, o conceito de bhakti, a devoção a um Deus pessoal, como o meio pelo qual, a alma se une ao Espírito e, isto passa a se tornar um dos principais temas. Os sentidos devem ser “subjugados” em harmonia e, então, a alma, através de seu amor e devoção, poderá encontrar repouso em Deus.
62. Quando um homem vive nos prazeres da sensualidade, cresce nele a atração por eles. Da atração, cresce o desejo, a luxúria da posse e, isso conduz à paixão e à raiva.

63. Da paixão provém a confusão da mente, então, a perda da memória, o esquecimento do dever. Dessa perda provém a ruína da razão e, a ruína da razão leva o homem à destruição.
Descreve-se agora, a direção oposta. Do prazer dos sentidos, cresce a atração, então o desejo, então a luxúria e a raiva, então a confusão da mente e, finalmente, a ruína da razão. A razão é buddhi, a faculdade do discernimento, o poder de discernir entre o bem e o mal, a “voz da consciência”. Quando isto se perde, o homem é levado à destruição.

64. Porém, a alma que se move no mundo dos sentidos e, ainda assim, mantém os sentidos em harmonia, livre da atração e da aversão, encontra repouso na quietude.

É muito importante reconhecermos, que não se trata de uma questão de supressão dos sentidos. A alma se move no mundo dos sentidos, mas, não é atraída, nem repelida por eles.

65. Nessa quietude, cai por terra todo o peso de todas as suas aflições, pois quando o coração tiver encontrado a quietude, a sabedoria também terá encontrado a paz.

Mais literalmente, “naquele, cujo coração está em paz, a razão logo alcança o equilíbrio” (B & D). O têrmo para paz ou tranqüilidade é prasanna, portanto, os pensamentos são prasanna. Isso é muito belo, pois, ainda que o significado básico seja “tranqüilo”, pode também significar “transparente”. Assim, prasanna é total transparência; o indivíduo é completamente verdadeiro e aberto. Outro significado para prasanna é “paz interior”. Em um indivíduo que tenha encontrado isso, o buddhi, a mente interior, permanece firme. Há uma belíssima progressão no próximo verso.

66. Não há sabedoria para um homem sem harmonia e, sem harmonia não haverá contemplação. Sem contemplação, não poderá haver paz e, sem paz, poderá haver felicidade?

Aqueles são os estágios da perfeição. Não há sabedoria para um homem que não esteja integrado, yukta. Para o indivíduo que não esteja integrado, não haverá contemplação. A palavra é bhavana. Zaehner pensa que ela significa desenvolvimento, crescimento, porém, outros, traduziram-na como meditação ou concentração. Penso que podemos tomá-la como contemplação. Sem a contemplação, não há paz; sem paz, como poderá haver felicidade? Para São Paulo, os frutos do espírito são: o amor, a felicidade, a paz. É precisamente a mesma doutrina.

67. Pois, quando a mente se torna acorrentada a uma paixão dos irrequietos sentidos, esta paixão arrebata a sabedoria do homem, assim como o vento leva o barco por sobre as ondas.

Esta é a direção oposta, quando o indivíduo é levado de roldão. É importante, compreendermos que quando somos arrebatados pelos sentidos e sentimentos, estamos sendo dominados por forças inconscientes, da nossa natureza. É sempre aquele o problema; a menos que tenhamos este controle interior, seremos simplesmente uma presa das forças inconscientes, que estão sempre operando em nós. Uma vez que tenhamos estabelecido o controle interior, então, não mais estaremos sujeitos a elas.

68. Portanto, o homem que, em recolhimento afasta seus sentidos dos prazeres da sensualidade, sua é uma serena sabedoria.

69. Na noite negra de todos os seres, o homem tranqüilo desperta à Luz. Porém, o que é dia para outros seres, é noite para o sábio que vê.
Este é um verso muito famoso, freqüentemente citado. Quando este mundo exterior dos sentidos se torna escuro, então, a luz interior desperta e, o indivíduo está na luz. Ao contrário, quando o mundo exterior é dominante, aquilo é a noite para o sábio. É portanto, na verdade, o oposto do que parece. Outra tradução seria: “O que para outros homens é a noite, naquilo está desperto o homem de auto-controle; quando outras pessoas estão acordadas, aquela é a noite para o sábio que vê” (Z). Zaehner tem um comentário interessante quanto ao significado de “ver”, pasyate. Significa ver a verdade e, ele enumera doze exemplos de visão, todos do Gita. Visão do Eu, Visão do Altíssimo, visão da inatividade é ação, visão de todos os seres no eu, visão de todos os seres em Deus, visão de que Sankhya e Yoga, teoria e prática, são uma só coisa, visão do Eu no eu, visão do Eu em todos os seres, visão de Deus em toda parte, visão do eu sem que seja um agente e, visão do eu na transmigração. Estes são exemplos desta visão. O sábio que vê a verdade não depende dos sentidos exteriores. Ele depende da luz interior. Quando os sentidos exteriores estão todos ativos, então, há escuridão interior. Quando os sentidos exteriores estão escuros, a luz interior brilha mais claramente.

Agora, outro belíssimo verso que expressa novamente esta idéia dos sentidos:
70. Assim como todas as águas fluem para o oceano, sem que o oceano jamais transborde, assim também, o sábio sente desejos, sem que ele jamais deixe de ser uno em sua paz infinita.

Ou, “Assim como as águas fluem para o mar já completamente cheio, cujo terreno permanece imóvel, assim também, todos os desejos fluem para o coração do homem e, o homem que conquista a paz, não é o que deseja os desejos” (Z). Em sânscrito temos kama kami, o homem que é quem deseja os desejos. Isto é muito importante, porque não está dizendo que desistimos de todos os desejos, mas, que somos livres de todo desejo, de todo apego ao desejo. Não é que não sintamos o desejo. Os desejos fluem em nossa direção, assim como as águas fluem para o oceano, mas, não estamos apegados a eles e, não somos perturbados, mais do que o oceano o é pelas águas. As coisas fluem para dentro e para fora e, não somos perturbados. Se estamos correndo atrás delas, agarrando-as e buscando-as, então, somos arrebatados. Aquele é kama kami, o homem apegado a seus desejos.

71. Para o homem que renuncia a todos os desejos e, que abandona todo orgulho da posse e, das conquistas próprias, o objetivo de paz suprema.
O significado literal é bem mais profundo do que “orgulho da posse”. É nirmame nirahankarah, livre do pensamento do “Eu” e do “meu”. Uma melhor tradução seria: “aquele que não pensa Eu sou isto. Isto é meu.” (Z). Zaehner tem um bom comentário nisso, mostrando que isto é estritamente uma doutrina budista, que se refere a esses conceitos de “Eu” e de “meu” como sendo ilusórios. Nem o corpo, nem a mente, nem os sentimentos, nem a percepção, nem a consciência, nem mesmo nada que esteja associado à vida neste mundo, pode ser descrito como “Eu” ou “meu”. Esta também é a grande intuição dos Upanishads. O “Eu” é nosso ser mais interior e, de nenhum modo, nosso corpo, nossos sentidos, nossos sentimentos ou, nossa mente, podem ser nosso verdadeiro “Eu”. Eles são nossos instrumentos, enquanto o verdadeiro “Eu”, de acordo com os Upanishads, é o Espírito eterno: Eu sou este Ser interior. É a identificação do Eu com o corpo, os sentimentos e os sentidos, que é a grande ilusão. Quando afastamos aquela projeção, então, descobrimos nosso verdadeiro eu.

72. Isto é o Eterno no homem, oh Arjuna. Ao alcançá-lo, desaparecem todas as ilusões. Até mesmo no último momento de sua vida na terra, o homem pode alcançar o nirvana de Brahman: o homem pode encontrar a paz, na paz de seu Deus.

Aqui temos outro exemplo de como Mascaró dá um sentido cristão ao texto.

A última frase, que expressa o mesmo pensamento em têrmos cristãos, é uma paráfrase. O texto diz simplesmente: “O nirvana de Brahman”. Do mesmo modo, “o Eterno no homem” é, literalmente, “o estado de fixação em Brahman” (Z), Brahmi sthitih. Quando o indivíduo tiver se libertado dos desejos e, não mais pensar em “Eu” ou “Meu”, então, ele despertará para a realidade, para a verdade, para o verdadeiro ser. Isso é o que é Brahmi sthitih, permanecer em Brahman. “Permanecendo ali, até mesmo ao morrer, ele irá ao nirvana de Brahman” (Z). Nirvana é um conceito budista e, significa literalmente “assoprar”. É a expiração da chama da vida. Freqüentemente o budismo é interpretado como uma religião muito negativa e, freqüentemente surge a pergunta se ele sequer deveria ser considerado uma religião, uma vez que ele nega tantas coisas que são consideradas fundamentais. Não há Deus, nenhuma alma e, nenhuma daquelas coisas que acreditamos sejam a essência da religião. O método de Budha era o da negação. Ele disse: libertem-se do apego. Para ele, a raíz de todo o mal era tanha, o apego, agarrar-se, agarrar-se aos sentidos, agarrar-se aos próprios sentimentos, agarrar-se aos próprios pensamentos, agarrar-se ao próprio ego. Liberte-se de todas essas coisas e, quando tudo isso tiver saído, tiver sido assoprado, tiver acabado, quando não mais houver qualquer desenvolvimento, então, você terá passado para o lado da paz do nirvana. Isso soa puramente negativo, mas, quando o indivíduo lê o texto, ele vê que o nirvana é repleto de bem-aventurança. É um estado de bem-aventurança absoluta. Na verdade, o indivíduo experienciará o nirvana, quando estiver completamente livre do ego e da aparência das coisas, quando ele tiver realizado a realidade, ou a verdade. É por essa razão, que é de tão grande beleza a frase “o nirvana de Brahman”. Ela apresenta tanto o aspecto positivo, como o negativo. Nirvana é a expiração, o fim desse fluxo, essa mudança, essa ilusão; e, Brahman é a realidade, a verdade, o ser ao qual alcançamos.

O Gita não vai além, neste estágio. Não diz mais nada acerca do Deus pessoal. Há apenas uma menção ao Deus pessoal, como vimos; até aqui ele é uma doutrina de auto-realização, nada além disso. À medida que progride, ele desenvolve a idéia do nirvana de Brahman e, mostra como o mesmo é, na verdade, uma união com o Deus pessoal.

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