Capítulo III

O Yoga da Ação
Dom Beda Griffiths, O.S.B. (1906-1993)
Tradução: Roldano Giuntoli

O capítulo 3 do Gita se inicia com uma pergunta muito pertinente. Diante da batalha, Arjuna depôs suas armas dizendo “Não lutarei”. Em primeiro lugar, o argumento de Krishna foi o de elevar a mente de Arjuna acima da batalha e, acima desta vida, completamente; para colocar diante dele o objetivo de realizar o Ser eterno, o Espírito eterno que nunca morrerá e, que nunca nasceu. O meio de alcançar essa consciência da Realidade eterna e, de encontrar a felicidade do Ser no Ser, se dá, como vimos, através do desapego. Isto é, estar livre do apego, não apenas aos sentidos e às paixões, mas, também, à própria mente.

Arjuna, muito naturalmente, pergunta a Krishna:

1. Se vosso pensamento é o de que a visão é superior à ação, por que me ordenais à terrível ação da guerra?

O termo para “visão” é buddhi, que seria melhor traduzido por sabedoria ou discernimento.

2. Minha mente está confusa, pois, em vossas palavras encontro contradições. Dizei-me, portanto, na verdade, por qual caminho poderei alcançar o Supremo.

A resposta de Krishna é muito relevante a todo esse questionamento da relação entre a contemplação e a ação, assim como o conhecemos na tradição cristã.

3. Neste mundo existem dois caminhos de perfeição, como te disse anteriormente, ó príncipe sem pecado, Jnana Yoga, o caminho da sabedoria dos Sankhyas, e, Karma Yoga, o caminho da ação dos Yóguis.

Mais adiante, Krishna adicionará a estes dois caminhos, o terceiro caminho do bhakti Yoga. Porém, no momento, a pergunta está entre jnana ou buddhi yoga, o yoga da sabedoria ou do discernimento e, karma yoga, o yoga do trabalho. Como alcançamos o Supremo? É apenas pela sabedoria, apenas pela meditação, que constituiria o caminho do jnana, ou, por outro lado, é pela ação, pelo karma?

4. Não será por se abster da ação, que o homem se verá livre da ação. Não é pela simples renúncia que ele alcança a perfeição suprema.
A ilusão é a de pensar que, se apenas pudéssemos fugir do mundo, de todas as perturbações, para um local tranqüilo, nós resolveríamos todos os nossos problemas. Porém, Krishna, assim como muitos outros mestres, mostra que esse escapismo não leva a nada. A simples renúncia, deixando para trás obras inacabadas, com uma atitude negativa, não levará ao Supremo.

5. Pois, um homem não pode ser, nem por um momento, sem ação. Inexoravelmente, todos são conduzidos à ação, pelas forças que se originam na Natureza.
É verdade, trata-se de uma ilusão pensarmos que poderíamos ser, a qualquer tempo, sem ação. Nós respiramos e, a respiração, em si mesma, é uma ação. O corpo está em ação, todo o mundo da natureza é atividade e, nós estamos neste mundo de atividade. Nunca seremos sem ação, de um modo ou de outro. Mesmo se nos retirarmos para uma caverna, ainda teremos que nos alimentar. Muitos sannyasis, assim como os monges do deserto, consideram este, como um dos maiores problemas que eles devem enfrentar. Muitas pessoas se dirigem a um local solitário para viver a sós, para se livrarem de todos os cuidados e distrações e, então, elas se dão conta de que gastam uma boa parte do tempo para obter sua alimentação diária. Elas precisam fazer tudo por si mesmas, assim, elas precisam encontrar seu arroz ou seu pão, caso ninguém lhes traga. Quanto tempo não se gasta, apenas obtendo as provisões, cozinhando, lavando e limpando em seguida. Em contraste, aqueles que vivem em comunidade, recebem tudo isso pronto. Eles podem fazer sua refeição e, então sair, sem qualquer problema. Assim, freqüentemente, é altamente ilusório supor que ao desistirmos da ação, alcançaremos o estado que estamos buscando. Então, de maneira muito sábia, Krishna diz:
6. Aquele que se abstém das ações, mas, acalenta em seu coração os prazeres delas, está iludido e, é um falso seguidor do Caminho.
O grande perigo é o de que uma pessoa se retire na solidão para meditar e, então, gaste todo o seu tempo pensando no mundo que deixou para trás e, em tudo o que renunciou e, naquilo de que gostaria. Enquanto todas essas coisas continuam girando em sua cabeça, ele estará mais apegado ao mundo, do que quando ele estava efetivamente envolvido nele. O mesmo tipo de problema é o que surge no jejum, em que uma das dificuldades é a de não pensar o tempo todo, no que a pessoa poderia estar comendo e, no que a pessoa está renunciando ou, no que a pessoa comerá no dia seguinte, quando terminar o jejum. A ação exterior não leva a absolutamente nada; o que é de total importância é a atitude interior da mente.

7. Porém, grandioso é o homem que, livre dos apegos e, com uma mente que governa seus poderes em harmonia, trabalha no caminho do Karma Yoga, o caminho da ação consagrada.

O ensinamento fundamental do Gita é o da libertação do apego, asakta, como sendo a condição essencial. Como vimos ao final do capítulo 2, isso significa libertação de todo apego aos sentidos, paixões, pensamentos e a toda a atividade da mente. “Com uma mente que governa seus poderes em harmonia”, ou seja, o controle dos sentidos pela mente, “faze teu trabalho”. Assim, o caminho é simples, mas, fundamental, o caminho da ação sem apego. Caso a mente esteja desapegada, em paz, unificada e íntegra, então, a ação é uma ação sagrada.

Assim, Krishna conclui:

8. A ação é superior à inação: cumpre, portanto, tua tarefa na vida. Não poderia haver nem mesmo a vida do corpo, caso não houvesse ação.
Sem alimentação, sem respiração, sem algum tipo de ação, a vida do corpo não pode se sustentar. A ação é necessária ao homem, mas, a ação deve ser realizada com um espírito de desapego e liberdade interior.

9. O mundo está acorrentado à ação, a não ser que a ação seja uma consagração. Que tuas ações, pois, sejam puras, livres dos grilhões do desejo.

O pano de fundo de tudo isso, é claro, é a idéia do karma. Krishna está argumentando em oposição ao entendimento de que o karma, a ação, acorrenta a alma. A convicção básica hinduísta é a de que toda ação possui suas conseqüências inevitáveis, boas ou más. Qualquer pessoa que faça uma ação boa, ou má, estará acorrentado a essas conseqüências. Dessa forma, muitos diriam: pare de agir. Uma forma extrema dessa doutrina é a convicção jaina de que toda atividade deveria cessar gradualmente. De acordo com a filosofia jaina, cada pessoa é um purusha, um espírito puro. Em inúmeras vidas o purusha caiu nas malhas do karma, da ação, sendo acorrentado a este mundo e suas paixões próprias. O objetivo do monge jaina era o de libertar-se de toda ação. A estratégia era a de se retirar gradualmente da atividade mundana e, então, de toda atividade intelectual e, finalmente, de toda atividade física. Ele se alimentaria cada vez menos, até que, no estágio final, abandonaria o corpo por não mais se alimentar. Este era o caminho do aperfeiçoamento jaina e, ainda que nos pareça terrivelmente negativo, jainas foram um povo muito versado em arte e, foram grandes humanistas. Eles copiaram livros antigos e escreveram importantes obras de sua própria autoria. Eles também foram autores de esculturas e pinturas maravilhosas e, muitas das cavernas da Índia que foram usadas para retiro de monges jainas, foram decoradas com belíssimas esculturas e pinturas. Há um famoso altar em Sravan Belgola no estado de Karnataka, onde há uma estátua de 20 m de altura, de uma figura nua, de um homem em pé, com seus braços ao lado do corpo. Aparentemente, é apenas entre os jainas que encontramos essa figura primitiva de um homem em pé, nu, absorto em contemplação. Conta-se a história de um contemplativo jaina, que às vezes ficava tão absorto, que as formigas vinham construir seu ninho em volta de suas pernas. Em certa ocasião as formigas construíram um ninho tão alto que cobriu o topo de sua cabeça e, ele permaneceu em contemplação até estar completamente submerso pelo formigueiro.

Esses monges jainas, realmente levavam ao pé da letra essa vocação do desapego. Eles se retiravam para cavernas nas colinas e, ali, quando sentiam ter chegado a sua hora, eles morriam. Quando, finalmente, tivessem se livrado de todo karma, do efeito das ações passadas e, quando tivessem se purificado completamente, então, eles estariam prontos para abandonar o corpo e alcançar kaivalya, ou seja, um estado de “isolamento” e perfeição espirituais. A seu modo, é uma belíssima idéia, mas, não é para todos. A ordem fundamental é “que tuas ações sejam, então, puras, livres dos grilhões do desejo”, não apenas renunciando à ação.

Agora, Krishna dá um passo a mais na argumentação. Não é apenas necessário desapegar-se e trabalhar sem recompensa, mas, também, a ação precisa se tornar um sacrifício.

10. Assim falou o Senhor da Criação quando criou a ambos, o homem e o sacrifício: “Pelo sacrifício, multiplicarás e obterás todos os teus desejos”.
Na verdade, a frase é: “Que isso seja a vaca que produz o leite de tudo o que desejas”. O termo é kanadhenu, a vaca que proporciona tudo o que desejas. Uma idéia muito profunda, que era universal no mundo antigo, é a de que a lei da vida é sacrifício. Ela aparece nos Vedas, e, a base de todo o sistema védico é a de que tudo se origina do Criador e, deve retornar ao Criador. O sacrifício é a lei do universo. Há o que vem do Criador para o mundo e, há o que retorna novamente. O homem deve realizar esse rito do retorno e, o sacrifício é esse ato pelo qual ele restitui as coisas a Deus. Transferindo tudo para Deus, através do sacrifício, o homem consuma a lei do universo e, correspondentemente, ele mesmo está consumado. Por meio dessa prática, ele recebe o leite de todos os seus desejos; ou, em outras palavras, satisfazem-se todos os seus desejos. Assim, o sacrifício não é essencialmente negativo. Temos essa tendência de pensar no sacrifício como sendo a desistência de algo, porém, este é apenas um aspecto preliminar. O significado mais profundo é o de que tomamos o que quer que não estejamos utilizando e o transferimos para Deus. E, assim, uma ação torna-se sagrada quando a consagramos para Deus, originando-se o termo sacrifício a partir da expressão latina sacrum facere, literalmente, “fazer sagrado”. Pecado é o exato oposto, pois o pecado é apropriação, tomar as coisas das mãos de Deus, fazendo-as nossas. Esse é o pecado universal. Sempre existe a tendência de tomar as coisas como se fossem nossas, como se elas pertencessem apenas a este mundo e, não tivessem relação com o divino. Essa total usurpação do reino do sagrado é um dos pecados fundamentais do mundo moderno.

Em um vilarejo indiano, tudo está relacionado ao sagrado e, nada se faz sem algum sacrifício. Por exemplo, se no ashram construímos uma casa, um eremitério, ou qualquer outro tipo de edificação, a primeira coisa que fazem os artesãos hinduístas, ao se apresentar, é escolher um dia e uma hora auspiciosos. Chegada a hora do início dos trabalhos, todos se juntam para a benção, prontos para consagrar seu trabalho. Sem isso, eles não iniciarão qualquer trabalho. Quando o trabalho se aproxima do final, quando as portas e janelas e tudo está concluído e, o edifício está prestes a ser completado, haverá outra benção, pois o homem não pode iniciar, ou terminar seu trabalho, sem Deus. Antes que se inicie a edificação, costuma-se consagrar a terra e, posicionar a casa relativamente a todas as direções do espaço. O construtor também se relaciona com o cosmos. Ele se estabelece no cosmos, relativamente a Deus, relativamente aos deuses, ou seja, aos poderes cósmicos; relativamente a seus vizinhos e, a tudo. Edificar é um ato total e, portanto, é totalmente consagrado. Mesmo naquilo que pensaríamos serem ações profanas, tal como uma reunião da sociedade cooperativa dos tecelões no vilarejo, não se negligencia o sagrado. Toda reunião se inicia com uma prece e, ao se produzirem os livros da contabilidade, antes que possam ser utilizados, aplica-se uma pasta de sândalo, em todos os cantos. Até mesmo os livros de contabilidade são consagrados.

Essa prática está em total acordo com a antiga idéia de que tudo deve ser relacionado ao mundo do além, ao Infinito. No mundo moderno, desde a Renascença, tudo foi retirado da esfera do sagrado. Um rei costumava ser uma pessoa sagrada, o símbolo disso era sua coroa e a cerimônia de coroação. O mesmo se dava com um Rajah. Hoje um primeiro ministro e um presidente são pessoas completamente seculares; nada há de sagrado acerca de todos eles.

Para nós, ocidentais de hoje, uma casa é profana, enquanto que na Europa medieval, todo vilarejo possuía seus locais sagrados. Havia sempre uma igreja no centro de um vilarejo. Porém, em um subúrbio moderno, freqüentemente, não há nenhuma igreja. O sagrado foi eliminado, tanto quanto possível. É claro que, sempre que o sagrado se transformou em um obstáculo ao progresso, a dessacralização foi vantajosa. As pessoas podem ser tão obsessivas com todos os rituais e tabus da religião, que passam a não conseguir fazer o trabalho normal. Esse era o ponto de vista de Nehru. Nehru era um agnóstico e, entendia que a religião na Índia era um obstáculo, pois, sempre que queria fazer qualquer coisa, havia algum costume sagrado impedindo-o. Era proibido, na tradição hinduísta, matar uma vaca, portanto, havia milhões de vacas velhas, que não traziam qualquer proveito a quem quer que fosse, alimentando-se e desperdiçando a terra. Este é um outro aspecto, mas, ainda que tenhamos que atentar para ambos os lados da questão, retirar tudo da esfera do sagrado é desastroso. Em última análise, tudo deve ser relacionado ao Único, à Verdade, à Realidade que está além e, que é a função do sacrifício.
11. Por meio do sacrifício honrarás os deuses e, os deuses, então, te amarão. E assim, em harmonia com eles, alcançarás o bem supremo.
Por “deuses”, é claro, como já mencionamos, devemos entender os “poderes cósmicos”, que na tradição cristã são conhecidos como anjos. Devemos nos relacionar com todo o cosmos. É por isso que, no ritual indiano da Missa, temos oito flores, que colocamos em oito diferentes lugares em volta das oferendas, que representam os oito pontos da bússola, as oito direções do espaço. Desse modo, entende-se que a Missa se eleva no centro do universo. Todo sacrifício deve, portanto, estar relacionado ao Centro. Ao entrar em um templo hinduísta, o devoto se relaciona a todos os deuses, isto é, a todos os poderes do cosmos. Primeiramente, ao entrar pelo portal, ele venera a estátua de Ganesh, o deus com cabeça de elefante, cuja função é a de remover os obstáculos. Quebra-se um coco à sua frente e, isso significa a quebra do ego, do eu exterior, representado pela casca exterior, de modo a revelar o eu interior, a substância branca, o doce leite da divina vida interior. E, então, após pedir que os obstáculos sejam removidos de sua mente, para que possa se abrir para a divindade, o devoto peregrina através de todos os diferentes altares, relacionando-se aos poderes cósmicos, até chegar ao altar mais interno, onde reside o Deus sem forma. Todos os outros deuses (com forma) são manifestações de Deus, mas, no centro está o lingam, que é o signo da divindade sem forma, o Deus “sem forma” que habita o centro do coração. O devoto se relaciona aos poderes cósmicos, até chegar ao centro interior de todos eles, no santuário interno. Este é o simbolismo do culto do templo. Nem todos os hinduístas têm consciência do simbolismo. Muitos se dirigem ao templo por desejarem algum favor neste mundo, uma noiva, ou um emprego, ou sucesso nos negócios, mas, há sempre aqueles que compreendem o significado mais profundo.
12. Pois, satisfeitos com teu sacrifício, os deuses te asseguram a felicidade de todos os teus desejos. Só um ladrão poderia desfrutar todos os dons deles recebidos, sem nada lhes oferecer em sacrifício.
Ao ofertar sacrifício, você se coloca em harmonia com o universo e, portanto, colhe o benefício disso. Sua vida está em harmonia e, nela haverá paz e felicidade. “Só um ladrão poderia desfrutar todos os dons deles recebidos, sem nada lhes oferecer em sacrifício.” Tomar o alimento sem reconhecê-lo como um dom de Deus, é apropriar-se do que não lhe é devido. No cristianismo, há uma longa tradição de render graças antes das refeições, ainda que ela esteja se tornando rara nos dias de hoje. Essa é uma maneira de reconhecer que o alimento é um dom de Deus. Comer e beber dependem da providência de Deus. Rendemos graças pelo alimento que estamos prestes a receber. Na tradição hinduísta, coloca-se uma folha de bananeira em frente a cada pessoa, que por sua vez esparge água em volta dela, de modo a fazer daquele um espaço sagrado, para purificar aquele espaço. No ofertório da Missa, dentro do rito indiano, nós primeiramente purificamos o altar e as cercanias, espargindo água em volta dele, criando um espaço sagrado. A comida vem de Deus e, alimentará nossa vida. A alimentação se torna um sacrifício, pois é a oferenda da comida, no fogo do estômago, ao Espírito interior. Este é o significado do comer e do beber. De modo inverso, tomar a comida sem ofertar sacrifício é o mesmo que roubar, tomar a comida de Deus, o dom de Deus e, se apropriar dela para si mesmo. Quase todas as pessoas nos dias de hoje cometem esse furto ao se alimentar, falhando em reconhecer que a comida vem de Deus, como parte da ordem cósmica. Essa falha é a essência do pecado.

Algum tempo atrás, li uma história acerca de uma menina que foi levada a um passeio no campo e, pela primeira vez viu flores silvestres. Ela perguntou à pessoa que estava com ela: “Você acha que Deus se importaria se eu colhesse algumas de Suas flores?” Penso que essa seja uma muito bonita atitude mental. Flores são um dom de Deus e, se as colhemos, estamos tomando o que pertence a Deus. Na antiguidade, ninguém cortaria uma árvore, nem mataria um animal, sem uma oferenda sacrificial. Eles sacrificavam, dizendo à árvore: “Lamentamos, você é uma bonita árvore e, nós reconhecemos isso, porém, precisamos te oferecer”.

Esse é o princípio do sacrifício, que era universal, em todas as culturas antigas, assim como no antigo mundo cristão.

Então, Krishna diz:

13. Homens santos que tomam sua comida dos resíduos do sacrifício, libertam-se de todos os seus pecados; porém, os ímpios que se banqueteiam, alimentam-se da comida que, na verdade, é pecado.

Espera-se que o homem santo se alimente do que sobra do sacrifício. Para o devoto, é comum o costume de ir a um templo e entregar como prasad, um dom de Deus, o alimento que se ofertou. Porém, outros, que só se alimentam para desfrute próprio, “se alimentam de comida que, na verdade, é pecado.” Esta é uma tremenda verdade. Quando nos alimentamos de comida apenas para desfrute próprio, comemos o pecado!

Neste ponto, segue-se uma descrição do processo pelo qual a comida que comemos nos chega de Deus.

14. O alimento é a vida dos seres e, todo alimento provém da chuva do alto. O sacrifício traz a chuva dos céus e, o sacrifício é a ação sagrada.
Todos vivemos dos frutos da terra e, por esses frutos dependemos da chuva. A chuva vem de Deus; é um dom de Deus. Trabalhamos a terra e, semeamos e, cultivamos, porém, em última análise, dependemos da chuva, assim, o alimento vem do alto.

“O sacrifício traz a chuva dos céus”, aqui a idéia é a de que, quando sacrificamos, nos colocamos em harmonia com a ordem cósmica e, então, Deus nos dará Sua chuva. Este também era um entendimento do Velho Testamento, por exemplo, no Levítico 26: 3,4: “Se vos conduzirdes segundo os meus estatutos, se guardardes meus mandamentos e os praticardes, então vos darei as chuvas no seu devido tempo, e a terra dará os seus produtos”. Se estivermos em harmonia com Deus e com a lei cósmica, então, seremos agraciados.

Este sentido de harmonia é evidente entre os pigmeus da África Central, tal como relatado por Colin Turnbull, em seu livro The Forest People. Os pigmeus vivem inteiramente na floresta e da floresta; a floresta é seu lar. Eles o sabem, da maneira mais completa, que todo animal e, toda planta nela e, toda sua vida, está integrada com a vida da floresta. Eles confiam que, se respeitarem a floresta, a floresta os sustentará. Eles devem obedecer a lei da floresta, pois, do contrário, eles sofrerão. Caso alguém faça algo que não devia, com relação a animais, ou a uma árvore, ou a qualquer coisa, ele será punido severamente. “A floresta é boa”, eles dizem, “a floresta nos sustentará”. É um princípio muito profundo que, uma vez mais, nós perdemos em grande parte. Nossa idéia, é a de que precisamos conquistar a natureza. A colonização da América do Norte é um bom exemplo disso. Os pioneiros dirigiram-se para o Oeste, conquistando a natureza, exterminando as tribos indígenas e, mais tarde, levando tratores e máquinas de terraplanagem, eles dominaram toda a terra, através de um sistema mecanizado de cultivo. Isso teve muito sucesso, porém, sabemos agora a que preço.

Trabalhar em harmonia com a natureza, ofertando o próprio trabalho como sacrifício, é o que faz toda a diferença. Essa mesma idéia é encontrada em outras culturas. Na China havia o costume de, uma vez por ano, em Pequim, o Imperador ofertar um sacrifício no templo. Sentia-se que a prosperidade do povo dependia desse sacrifício. O Imperador, que era conhecido como Filho dos Céus, colocava-se em harmonia, sujeitava-se, à Lei dos Céus e, caso o Imperador estivesse em harmonia, o povo também estaria. Caso o povo estivesse em harmonia, a terra e todas as suas riquezas também estariam. Assim, todo o cosmos estaria em uma inter-dependência harmoniosa. Porém, se em qualquer nível, seja o Imperador, ou o povo, começassem a quebrar aquelas leis, na sua atitude perante a terra, então, toda a harmonia do universo seria perturbada. Basicamente, é isso o que está acontecendo nos dias de hoje. Ao ignorarmos a necessidade de harmonia e, ao utilizarmos todos os esforços da ciência e da tecnologia, para dominar a terra, produzimos forças de destruição que poderiam destruir toda a terra.

Encontramos uma ilustração disso em um texto taoísta, citado por Zaehner em seu livro Concordant Discord. Havia um jardineiro na China, que possuía um bonito jardim e, certo dia, alguém veio lhe apresentar um engenhoso dispositivo técnico que lhe facilitaria a jardinagem. A isso, o jardineiro respondeu: “Não é que eu não entenda tudo o que há acerca de seu dispositivo, mas, é que eu me envergonharia de utilizá-lo.” Sua jardinagem se dava de acordo com a lei da natureza, em harmonia com o Tao, pois a China fora construída em concordância com a idéia do Tao, a harmonia e a inter-dependência de todas as coisas no cosmos.

Nós, no entanto, nos submetemos a todos esses dispositivos engenhosos que facilitam as coisas e, nos permitem conseguir as coisas mais rapidamente. Por exemplo, na Índia de hoje, é costumeira a utilização de adubos artificiais para o cultivo de coqueiros. Como resultado, conseguem-se melhores colheitas, por alguns anos, mas, com o conseqüente empobrecimento gradual da terra e, com envenenamento ambiental. Entretanto, caso o solo seja enriquecido gradualmente ao longo dos anos com matéria orgânica, de início, o rendimento será menor, porém, conseguir-se-á um enriquecimento permanente da terra.

15. Os Vedas descrevem a ação sagrada e, eles provém do Eterno, portanto, o Eterno estará sempre presente em um sacrifício.
O termo, aqui traduzido como Eterno, é Brahman. “O trabalho se origina em Brahman e, Brahman nasceu do Imperecível” (Z). Parece ser claro que este é um dos primeiros usos da palavra Brahman. Originalmente, Brahman era o mantra védico, a prece que acompanhava o sacrifício e, aqui parece ser este o significado. Assim, a ação sagrada provém da palavra sagrada dos Vedas e, estes provém do Eterno, do Imperecível. Sempre que se faz essa oferenda, aqueles que sacrificam, se relacionam ao Eterno e, o Eterno estará presente em seu sacrifício.

16. Assim foi colocada em movimento a Roda da Lei e, aquele homem que, em uma pecaminosa vida de prazeres, não ajuda na rotação dela, vive mesmo em vão.

Dharma chakra é a roda da lei. Se vivemos de acordo com o dharma, então, estamos em harmonia com a natureza e, tudo vai bem. “E, aquele homem que, em uma pecaminosa vida de prazeres, não ajuda a rotação dela, vive mesmo em vão.” Essa é a idéia por trás da roda das preces budistas. Ao girar a roda de preces, os budistas entendem estar ajudando a girar a roda da lei. Não se trata de mera superstição; trata-se de um gesto pelo qual eles procuram se relacionar à harmonia do universo, contrariamente a todos aqueles gestos que, por serem feitos apenas por prazer ou lucro, nos dissociam da harmonia do universo.

Após apresentar o significado real do sacrifício, Krishna agora volta a seu tema principal.

17. Porém, o homem que encontrou a felicidade do Espírito, que no Espírito encontrou sua paz, e, no Espírito se satisfaz, esse homem está além da lei da ação.

O termo para Espírito, é Atman. Uma tradução mais literal seria: “o homem que se regozija no Ser e, com o Ser se satisfaz e, está contente no Ser, para ele, na verdade, nada há a ser feito.” (B & D) O tema fundamental é o de que todas as ações deveriam proceder do Espírito interior, do Ser interior. Tudo o que fazemos deveria estar relacionado à Fonte da vida, à Fonte da verdade e, por causa disso, todas as nossas ações seriam verdadeiras e harmoniosas; todas as nossas ações seriam feitas de acordo com a lei da natureza. Isso seria o ideal.

18. Ele está além do que se faz e, além do que não se faz e, todos os seus trabalhos estão além da ajuda de seres mortais.
Isto é um pouco obscuro. “No trabalho que se faz, e no que se desfaz, na terra, ele não possui interesse. . . sem interesse em todos os eventuais seres. Ele não depende desse interesse” (Z). Isso soa mais como se o Gita estivesse voltando atrás no que se disse e, alguns intérpretes aqui encontram contradição, porém, considero ser verdadeira a afirmação de que, no Gita, há diferentes tradições, até mesmo opostas entre si, que foram reunidas, sem uma completa harmonização. Surgirá uma doutrina e, mais tarde, então, ela será corrigida por outra. Certamente, tem-se a impressão aqui de que, se a pessoa está vivendo no Ser, ela não precisará fazer nada. Até mesmo menciona: “nada há que ele precise fazer” (B & D). Porém, Zaehner assim o traduz: “ele não possui interesse em qualquer eventual ser. Desse interesse ele não depende.” A interpretação de Zaehner está mais próxima da verdade. O homem que realizou o Ser, não está preso à realização de qualquer trabalho. Seu trabalho provém da liberdade interior do Espírito. Ele não está interessado, no sentido de que ele não está apegado a nada. Vivendo em desapego, ele está livre para agir e, livre para não agir, tal como solicitado pelo Espírito; realmente, é isto o que o Gita ensina. Esse aspecto aflora no próximo verso.
19. Livre dos grilhões do apego, faze, portanto, o que deve ser feito: pois, o homem cujo trabalho é puro, alcança verdadeiramente o Supremo.
Zaehner resume assim o argumento: “Faça teu trabalho de acordo com o processo do mundo, a ordem cósmica, da qual és parte. Porém, sem auferir prazer nas coisas mundanas. Sinta prazer apenas no Ser imortal, o que te tornará independente do trabalho que precisas fazer. Portanto, desapega-te de qualquer interesse que te prenda ao que fazes. E, faze-o porque, tal como eu, Krishna, estou prestes a te dizer, isto é precisamente o que eu, que sou Deus, faço.” Este é um argumento que será desenvolvido, um pouco mais adiante. Agindo dessa forma, ele estará fazendo o que o próprio Deus faz.

20. O rei Janaka, bem como outros guerreiros, atingiram a perfeição através do caminho da ação: Permite que teu objetivo seja o bem de todos e, então, leva a efeito tua tarefa na vida.

O rei Janaka é um kshatriya, um rei ou rajah, que figura nos Upanishads como um homem que buscava a perfeição. Ele é um santo guerreiro, que mais se parece a São Luís, o rei francês, um guerreiro que alcançou a perfeição espiritual e, toma-se aqui como exemplo de alguém que se torna perfeito através do seu trabalho. “Permita que teu objetivo, portanto, seja o bem de todos,” o bem-estar do mundo, lokasya samgraham. É importante reconhecermos que a realização-do-Eu possui um valor universal. Qualquer trabalho que seja feito dentro desse espírito, será feito para o bem de todo o mundo. Esta é uma verdade tão intrínseca para o cristianismo, quanto o é para o hinduísmo.

21. É nas ações dos melhores homens, que os outros encontram sua regra de ação. O caminho seguido por um grande homem, torna-se um guia para o mundo.

Esta é uma grande verdade que foi claramente demonstrada na Índia, por exemplo, pela vida de Mahatma Gandhi, que se tornou um modelo a ser seguido por toda Índia. A seguir, Krishna se refere a si mesmo, como um exemplo.

22. Não tenho nenhum trabalho a fazer em nenhum dos mundos, Arjuna, pois estes são meus. Nada tenho a obter, porque tenho tudo. Ainda assim, eu trabalho.

Krishna fala em nome do Criador: ele não tem nenhum trabalho a fazer. Ele não está preso a nada no mundo. Ele está completamente satisfeito em si mesmo, ainda assim, trabalha. Isto está em ambas as tradições da criação do mundo, cristã e hinduísta. Não surge de Deus por necessidade. Deus não precisava criá-lo. No pensamento hinduísta, diz-se que a criação provém de lila, o jogo, de Deus, ou, como dizemos, do amor, do transbordamento de bondade (bonum diffusivum sui, como Boaventura1 assim o chama). Há uma energia no amor, que quer compartilhar e que, mais do que por meio de qualquer tipo de necessidade, é a razão pela qual o mundo passa a existir.

23. Se eu não estivesse preso à ação, incansável, eternamente, os homens que seguem muitos caminhos, seguiriam meu caminho de inatividade.
Deus estabelece este exemplo para o mundo: o de estar sempre trabalhando. No Evangelho, Jesus diz: “Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho” (Jo 5:17). Ele estava consciente de estar continuando o trabalho de seu Pai. É um trabalho, não apenas de criação, mas, também, de redenção e de revigoramento. “Se eu não estivesse preso à ação, incansável, eternamente, os homens que seguem muitos caminhos, seguiriam meu caminho de inatividade.” O Gita reivindica que este karma yoga, o caminho da ação, segue o próprio exemplo de Deus que, trabalhando sem nenhum tipo de apego ou aprisionamento, em total liberdade, está sempre em atividade no mundo.

24. Caso meu trabalho viesse a chegar a um fim, estes mundos terminariam destruídos, a confusão reinaria em tudo: seria a morte de todos os seres.
25. Assim como o insensato trabalha egoisticamente, acorrentado a seus trabalhos egoístas, que o sábio trabalhe altruisticamente, para o bem de todo o mundo.

26. Que o sábio não perturbe a mente dos insensatos, enquanto trabalham egoisticamente. Que ele lhes mostre, ao trabalhar com devoção, a felicidade do bom trabalho.

Este é um ponto de vista prático e realista. É inútil, meramente dizer às pessoas para trabalharem sem apego, mas, quando elas virem o exemplo do trabalho com devoção e, a felicidade que ele acarreta, elas se convencerão. O termo “perturbar” que Mascaró utiliza em “Que o sábio não perturbe a mente dos insensatos,” é literalmente “dividir”, “dividir a mente”, buddhi bhedam. bhedam é diferença, buddhi é a mente. Isto implica que a mente é naturalmente singular, indivisa, e, que dividí-la seria dissipá-la, destruí-la. Literalmente, é isto o que se quer dizer com schizophrenia, do grego schizo, dividir, e phren, a mente. Assim, o homem de mente insensata está dividido e, perdeu sua integridade interior. São Tiago o chama de “homem dúbio” (Tiago 1:8 e 4:8). Em alguma extensão, somos todos dúbios nesse sentido. Temos uma divisão em nossas mentes e, procuramos restaurar a unidade e a integridade originais da mente, por meio do yoga. Assim, “Que ele próprio incentive todas as maneiras de se trabalhar, ainda que esteja ocupado na ação de um homem íntegro” (Z). O termo para “íntegro” é yukta, ou seja, ligado ou unido. Aqui, Krishna insere uma outra idéia.

27. Todas as ações acontecem no tempo, pelo entrelaçamento das forças da Natureza; mas, o homem perdido na ilusão egoísta, acredita ser ele mesmo o ator.
28. Porém, o homem que conhece a relação existente entre as forças da Natureza e as ações, compreende como, algumas forças da Natureza, agem sobre outras forças da Natureza, sem se deixar escravizar.
Esta idéia, que deriva da doutrina do Sankhya, é a de que toda a atividade da natureza provém das forças da natureza, de prakrti. purusha é o espírito, a consciência e, é inativo. É por essa razão que Kali é algumas vezes representada dançando sobre o corpo prostrado de Shiva. Shiva é consciência pura. Ele é espírito e, é inativo, perfeitamente imóvel, enquanto toda atividade da natureza provém de prakrti. O argumento é o de que todas essas forças da natureza estão em atividade em você e, em mim e, não devemos pensar “eu sou o realizador”. Na verdade, são todas essas forças que estão trabalhando em nós. Ora, isto pode confundir, pois pode servir para sugerir que podemos permanecer completamente inativos, simplesmente suspendendo toda a atividade e, permitindo que as forças da natureza prossigam. Neste ponto, precisamos lembrar que há diferentes correntes no Gita e, esta, a doutrina do Sankhya, é apenas uma delas. Mais adiante, o Gita aperfeiçoa essa doutrina. A velha doutrina, que foi a fonte de tanto ascetismo, era a de que o Espírito é desapegado; é consciência pura e, nada tem a ver com prakrti, com a natureza , com as ações. Esta, como vimos, é a visão dos jainas. Nesta visão, o objetivo da vida é o de se desapegar completamente do mundo das ações, da natureza, deixando que o corpo seja governado pelas forças da natureza, enquanto o espírito, purusha, permanece completamente separado, isolado, kevalam. Obviamente, esta é uma doutrina muito inadequada que, também, é perigosa, porque pode conduzir à esquizofrenia, à mente dividida que discutimos há pouco. Porém, a doutrina do Gita e, do posterior Vedanta é muito mais profunda. Tanto o Gita, quanto o posterior Vedanta, aceitam que, de um lado há todas as forças da natureza e, de outro existe um poder de consciência, que precisa estar desapegado das forças da natureza. Porém, acima da natureza e, acima da consciência, está o Senhor, que está em atividade, tanto na natureza, quanto em nossa consciência. Quando nos unimos a ele, entramos em harmonia com toda a natureza, em vez de sermos perturbados por ela. Assim, o texto não prega que devamos nos separar de toda atividade.
29. Aqueles que vivem iludidos pelas forças da natureza, acorrentam-se à operação daquelas forças. Que o sábio, aquele que enxerga o Tudo, não perturbe o insensato, aquele que não enxerga o Tudo.
Muitas pessoas pensam que, ao obedecer às forças da natureza, seus instintos, apetites, desejos e ambições, são mestres de seu destino e conquistam o mundo. De fato, essas pessoas estão apenas sendo conduzidas pelas forças do inconsciente. Testemunhamos isso em muitos dos líderes mundiais, tais como Hitler e Mussolini, que foram conduzidos pelas forças da natureza e, eram marionetes da grande máquina mundial. O homem sábio não se ilude com todas essas forças, pois se separou delas. Por outro lado, muitas pessoas, estão simplesmente escravizadas pelas forças da natureza que as circundam e, todo o tempo, são conduzidas por elas.

“Que o sábio não perturbe o insensato.” Não deveríamos sair por aí, amolando as pessoas. O ideal hinduísta é o de que o sábio não sai por aí procurando mudar as pessoas. Ele vive sua própria vida, em pureza interior e, realiza todas as suas ações sem apego. Portanto, ele se constitui em exemplo para os outros, sem perturbá-los deliberadamente.

Agora chegamos ao terceiro estágio. Primeiramente, agimos sem buscar recompensa; em segundo lugar, fazemos da ação um sacrifício, uma ação sagrada; em terceiro lugar, a relacionamos ao Supremo, nós a entregamos a Deus. Assim diz Krishna:

30. Oferece-me todos os teus trabalhos e, repousa tua mente no Supremo. Liberta-te das esperanças vãs e, pensamentos egoístas e, com paz interior, luta tuas batalhas.

“Oferece-me todos os teus trabalhos”, isto é, a Krishna, ao Senhor. Até aqui, havia sido: faze teu trabalho em harmonia, como um yukta, uma pessoa íntegra. Essa é a idéia do buddhi yoga, o yoga da sabedoria. Agora, adiciona-se o terceiro estágio, onde todo trabalho deve ser entregue ao Senhor, em um espírito de bhakti, devoção. Este se tornará um dos principais temas do Gita.

31. Aqueles que sempre seguem minha doutrina e, que têm fé e, que têm boa vontade, encontram sua liberdade por meio de puro trabalho.
“Quem quer que pratique esta minha doutrina, firme na fé, sem sofisma, ele também será libertado do trabalho” (Z). Aqui está mais claro, libertação do trabalho, karma, significando, é claro, libertação dos grilhões do trabalho.

32. Porém, aqueles que não seguem minha doutrina e, que têm má-vontade, são homens cegos a toda sabedoria, com mente confusa: eles estão perdidos.
33. ‘Mesmo um homem sábio age sob o impulso de sua natureza: todos os seres seguem a natureza. De que vale a repressão?’

Este é um verso curioso. Mascaró o coloca entre apóstrofos, sugerindo que seja uma objeção inserida, pois, em si, ele é um pouco estranho. O argumento do Gita tem sido o de que a natureza segue em frente com seus trabalhos, porém, que o homem sábio, por ser desapegado, é capaz de se libertar desse grilhão da natureza. Ora, este sloka, “Mesmo um homem sábio age sob o impulso de sua natureza: todos os seres seguem a natureza. De que vale a repressão?” parece ser uma objeção de um ponto de vista contrário. O próximo sloka, esclarece.

34. O ódio e a luxúria pelas coisas da natureza, estão enraizados na mais baixa natureza do homem. Que ele não caia sob seu poder: eles são os dois inimigos em seu caminho.

“A paixão e o ódio estão assentados em cada um dos sentidos, voltados a seus respectivos objetos. Que ninguém caia vítima de seu poder, pois eles são os salteadores do caminho” (Z); ou, como traduzido por Mascaró: “eles são os dois inimigos em seu caminho.” Portanto, a paixão e o ódio, a atração e a repulsão, raga e dvesa, são os dois inimigos. Chegamos agora a um ditado muito conhecido, que é de grande importância.

35. E, cumpre teu dever, ainda que seja humilde, em vez de cumprir o de outrem, ainda que seja grandioso. Morrer no próprio dever é a vida, viver no de outrem é a morte.

Isto, é claro, melhor sustenta o sistema de castas, onde todos têm seu próprio dever na vida, ao qual precisam obedecer. Não deveríamos, porém, na verdade, menosprezar isso, pois esta era uma doutrina tradicional em todas as religiões, a de que o homem tem sua própria condição de vida. O Livro de Oração Comum dos anglicanos, por exemplo, diz: “Cumpre teu dever na condição de vida na qual, a Deus, aprouve te solicitar”. O indivíduo deveria sempre permanecer em sua própria condição de vida. Nos dias de hoje, as pessoas são muito contrárias a isso. A idéia daquela sociedade significativamente hierarquizada era a de que todas as pessoas tinham seu lugar e, acerca do sistema de castas, até podemos dizer que, ainda que tenha muitas vezes sido abusado, todos tinham um lugar. Mesmo o lixeiro, o intocável, tinha seu lugar e se sustentava. A sociedade não podia dispensá-lo e, portanto, ele precisava ser sustentado. Portanto, há uma espécie de justiça nisso e, esse era, certamente, o entendimento de todos. Todos, seja o sacerdote, o guerreiro ou o trabalhador, deveriam permanecer em seu próprio dharma, cada pessoa deveria fazer o trabalho que lhe fora designado por Deus. Nós somos por demais inclinados a pensar que toda pessoa deveria procurar escalar o topo e, isso produz uma sociedade de uma ordem muito competitiva. Ainda que exista algo a ser dito em favor do outro sistema, o ideal deve repousar em algum ponto entre os dois extremos.

Aqui, chegamos a um trecho ainda mais importante, em que Arjuna pergunta:
36. Que poder é esse, Krishna, que conduz o homem à ação pecaminosa, mesmo sem querer, como se fosse impotente?

Este é um sentimento muito comum, que também foi expressado por São Paulo em sua epístola aos romanos, onde diz: “Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero.” (Rom. 7:19) Existe algo em nós, que nos faz agir pecaminosamente, mesmo sem querer, como se fôssemos impotentes. Hoje, acredito que estejamos muito mais conscientes disso. Reconhecemos sermos conduzidos por forças do inconsciente, que não podem ser controladas. Algumas vezes, o pecado é consciente, mas, é tão freqüente que não estejamos completamente conscientes do que estamos fazendo e, até mesmo, que sejamos conduzidos, por essas forças do inconsciente, a agir sem o querer, como se não tivéssemos o poder de lhes resistir.

Krishna responde à pergunta de Arjuna:

37. O desejo ganancioso e a ira, nascidos da paixão, são o grande mal, a culminância da destruição, isto é, o inimigo da alma.
Diz-se que o desejo é o mal mais radical. Aqui pode haver uma influência budista, pois Buddha pensava que tanha, o apego a coisas e pessoas, é a raiz de todo mal e, que é resultante do egoísmo.
38. O desejo obscurece tudo, como a fumaça o faz ao fogo, como a poeira ao espelho, como a matriz ao feto.

39. O desejo obscurece a sabedoria, o sempre presente inimigo dos sábios, desejo em suas inumeráveis formas, que, como um fogo, não pode encontrar satisfação.

Em certo sentido, é o desejo que move todas as pessoas, o desejo pelo prazer, pelo lucro, pela prosperidade, por companhia, por amizade, por coisas boas e más; há uma tremenda energia motora em nossa natureza. Como vimos, o desejo, em si mesmo, não está errado, mas, errado é o desejo incontrolável que simplesmente impulsiona, sem razão e, então, obscurece a sabedoria e, cria confusão.

40. O desejo encontrou um lugar nos sentidos, na mente e, na razão do homem. Através deles, o desejo cega a alma, após ter obscurecido a sabedoria.
Estas são três faculdades básicas da alma, os sentidos (indriyas), manas e, a elevada razão (buddhi). Portanto, o desejo obscurece todas as nossa faculdades. Isto está muito perto do que Freud chamava de libido. Libido, ou kama, é a paixão subliminar que domina, inconscientemente, tudo o que fazemos.
41. Aplica, portanto, teus sentidos em harmonia e, então, mata teu desejo pecaminoso, esse destruidor da visão e da sabedoria.

“Portanto, reprimindo os sentidos, elimina esse mal.”(Z). O texto não diz que devemos matar esse desejo, mas, esse pecado. O que precisa ser eliminado, é o poder negativo do pecado, o destruidor da sabedoria. Essa é a verdadeira cruz. A natureza do ego precisa ser crucificada, eliminada, antes que a mente e todo o ser possam ser libertos. É a raiz do mal, “o destruidor tanto da visão, quanto da sabedoria”. Há aqui dois termos: jnana que significa conhecimento ou sabedoria e, vijnana que indica divisão e, significa conhecimento que discerne. jnana é conhecimento uni-direcionado, ou sabedoria divina. vijnana é discernimento ou conhecimento racional, discursivo. Os próprios poderes de compreensão são destruídos.

Em seguida, há uma bonita passagem, que nos lembra o Katha Upanishad.
42. Eles dizem que o poder dos sentidos é grande. Porém, maior que os sentidos, é a mente. Maior que a mente, é Buddhi, a razão; e, maior que a razão é Ele, o Espírito que está no homem e, em todas as coisas.

O termo para “Ele” é simplesmente sah, que significa o “Ser”, o “Espírito”. A mais elevada realidade, freqüentemente, não recebe nome. Alternativamente, chama-se apenas tat ou sah. O Katha Upanishad afirma: “Além dos sentidos, está a mente, manas; além da mente, está o intelecto, buddhi; e, além do intelecto está mahat, a mente cósmica universal; além de mahat, está avyakta, o não-manifesto e, finalmente, além dele, está purusha, a pessoa. Ele é o Supremo”.

43. Conhece-O, portanto, além da razão; e, permite que Sua paz te dê paz. Sê um guerreiro e mata o desejo, esse poderoso inimigo da alma.
É importante notarmos que necessitamos ir além da elevada razão, de buddhi. Ela é a faculdade pela qual ultrapassamos nossos sentidos e nossa mente, manas, e, então, necessitamos ir além, até mesmo de buddhi, para alcançá-Lo, Aquele que está além da razão, “e, permite que Sua paz te dê paz.” A tradução literal é “o Eu reprimindo o eu”. Só aprendemos a nos controlar, por meio desse Eu interior. A grande ilusão é a de que o ego pode controlar o corpo e os sentidos e tudo o mais e, muitas pessoas tentam progredir nesse nível. No ascetismo comum, as pessoas tentam controlar o corpo, negando as paixões e os desejos e, tentam controlar a imaginação e a mente; porém, durante o tempo todo, o próprio poder pelo qual elas procuram controlar isso tudo, é precisamente o único que precisa ser controlado e, é claro, elas não conseguem controlar isso. Esse tipo de tentativa de controle, apenas conduz a um maior enraizamento do ego. Só quando passamos além do ego, além de nós mesmos, com esse poder da graça, ou como quer que descrevamos o Eu interior, alcançamos esse controle. Esta é, também, a idéia cristã; apenas por meio da graça, podemos nos libertar dos poderes de nossa própria natureza. É um dom de Deus. A falta de controle que temos sobre nós mesmos, é a essência do conceito do pecado original. Nos encontramos em uma condição, da qual não podemos sair com nossos próprios meios e, portanto, necessitamos redenção. Algo, que se encontra acima da natureza humana, precisa chegar a esta e, apenas isso pode nos soltar e nos colocar em liberdade. Assim, trata-se de um processo em que passamos além da mente, para o Eu que nos é interior.

“Sê um guerreiro e mata o desejo, esse poderoso inimigo da alma.” Isto confere um sentido mais profundo a todo o discurso. Nos damos conta de que a batalha exterior foi deixada para trás. No início, Arjuna está envolvido em uma batalha exterior, mas, a verdadeira batalha é interior. Sua luta se dá contra o inimigo da alma; o objetivo real é a destruição do desejo pecaminoso, não a destruição de inimigos no campo de batalha. Matar o inimigo interior, a força que tenta matar o verdadeiro Eu.

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