Laurence Freemam OSB, The Tablet Julho 2012

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Em um vídeo no YouTube que vale a pena assistir, o sedutor Leonard Cohen encanta uma reluzente plateia espanhola durante uma cerimônia de premiação para sua poesia. Primeiro, disse o cantor, ele se sentia falso ao aceitar um prêmio por algo sobre o qual ele não tinha controle: a poesia vem de um lugar "no qual ninguém manda e que ninguém conquista".

Em seguida, confessou sua dívida para com a Espanha. O pouco que sabia de violão ele havia aprendido de um jovem músico espanhol que conheceu pouco antes de esse músico tirar a própria vida. Cohen confidenciou que toda a sua música se baseava nos poucos acordes que ele aprendera desse professor condenado. “Aquela terra” tinha-lhe dado tudo aquilo; e então, jogou uma fala significativa para aquele público: “Sei que, da mesma forma que uma carteira de identidade não é um homem, uma avaliação de crédito não é um país”.

O que a “Europa” evoca hoje senão uma intratável crise financeira decorrente da ganância desenfreada e da exploração dos fracos? A “união” é composta por intensas forças centrífugas de cores nacionais. O que nos aguarda é uma batalha entre dois destinos iminentes: uma Europa alemã ou uma Europa europeia. Os estereótipos das grandes culturas colocam o hedonismo dos católicos (e ortodoxos) do sul de um lado dos Alpes contra a sombria ética protestante de trabalho do outro. E o futebol europeu, apesar de seus times multirraciais, ainda expõe lealdades políticas inconfessáveis e ódios entre as tribos que César tentou romanizar.

Há uma boa razão hoje em dia para identificar a Europa com a crise do Euro e alguém tem que pagar as contas. Mas a economia faz prognósticos e torna tudo abstrato. As abstrações levam a desumanidades tragicômicas e a políticas que não dão certo: à extinção dos ônibus turísticos em que os londrinos gostavam de se arriscar viajando de graça; à proibição de linguiças e queijos tradicionais por causa de novas normas de saúde e segurança. A cultura europeia, com suas camadas formadas ao longo de séculos, está minada pela abstração e pela centralização. Onde ela sobrevive é no chão, em vidas diárias, em excentricidades, e não em tabelas atuariais – até mesmo o pouco que resta da cultura religiosa europeia.

Flandres é um bom exemplo: o coração burocrático de Europa acha muito difícil eleger seu próprio governo mas ainda assim funciona sem problemas. Falando a mesma língua que seus vizinhos holandeses mais robustos, é revelador perceber o quanto essas duas tribos vizinhas do norte da Europa continuam diferentes e conflituosas.

Quando visitei nossos grupos de meditação na Bélgica fiquei na bela cidade universitária de Lovaina. Hospedei-me em um pequeno hotel, imaculadamente limpo mas que posava estranhamente de museu de artefatos litúrgicos não tão bonitos. Obviamente o proprietário tinha uma coisa com estolas, casulas, turíbulos e imagens sacras. Estas eram exibidas nos quartos, banheiros e no salão de café da manhã. Os banheiros no térreo eram identificados por figuras de Nossa Senhora e Nosso Senhor. O alegre anfitrião tinha, penso eu, um humor pós-moderno no meio de tudo aquilo. Isso não é tipicamente belga, claro; mas só em poucos lugares da Europa poderia tal excentricidade, um fragmento perdido de um mundo religioso que se foi há muito tempo, ser tolerada. Certamente não na Inglaterra, a terra dos altares despojados e de estátuas de santos decapitadas.

Os beguinas foram um movimento do norte da Europa de espiritualidade católica e estabeleceram comunidades que desdenharam o controle eclesiástico por séculos. Os beguinários – habitações urbanas cercadas de muros – são a memória visível desse segmento da cultura religiosa europeia. Atualmente cheirando a naftalina, suas ruas de paralelepípedos e casas limpas ainda respiram a paz e a mansidão da vida que uma vez alimentaram. No beguinário de Lovaina encontrei-me com com um grupo de seus descendentes modernos, cristãos desembaraçados e corajosos que trabalham não para fazer proselitismo, mas para introduzir uma perspectiva cristã nos meios anticlericais através de um núcleo de respeitados especialistas seculares.

Em minha fala na abadia de Grimbergen, perto de Bruxelas, brinquei que eu tinha vindo para falar sobre a meditação, mas também por causa da cerveja. A “Grimbergen” é uma das melhores cervejas belgas mais fortes, elaborada no passado pelos monges e que, imagino, ainda os sustenta em meio às oscilações do Euro. Depois da palestra, o abade pediu-me para esperar e voltou com um pacote de presente de duas garrafas dessa bebida excelente. Eu o embalei cuidadosamente para compartilhar com a comunidade, em Londres, no meu retorno. Cada um desses encontros comuns foi especificamente europeu de uma forma que nenhum parque temático poderia reproduzir. Poucos não europeus identificariam as ricas camadas e as matizadas nuances deste contexto cultural. Ainda  há prazer e significado no autorreconhecimento e no sentido de pertença a uma união não monetária de uma cultura tão rica, mesmo que falida.

O que eu não tinha lembrado era da nova Europa. Minha cerveja foi detectada pelo raio X da segurança e confiscada antes de deixar o continente. Eu disse ao guarda para ficar com ela e aproveitá-la. Ele me olhou chocado e disse que era contra os regulamentos, e que ela seria destruída.


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