Reconhecendo

Laurence Freeman OSB
Tablet: Abril 2009
Traduzido por Roldano Giuntoli


Eu precisava de um pouco de tempo de quietude para me preparar para a palestra, tentava encontrar um canto onde pudesse desaparecer. Ter que pedir para que a pessoa seja breve, nunca é gentil, especialmente se for uma pessoa que voce conhece, e que há tempos não vê, mas, estava encontrando dificuldade em me retirar. Apareceu uma oportunidade e procurei aproveitá-la, quando, então me dei conta de alguém de pé a meu lado, permitindo-me a passagem, caso quisesse, mas encarando-me atentamente. Olhei-o com a intenção de ser polido sem travar contato. Ele pareceu contente em me deixar passar, mas, algo acerca de sua presença me reteve, e eu disparei aquela pausa que fatalmente me atrasaria. ‘Olá, Laurence.’

Tratava-se de um sotaque alemão, e estávamos em Paris. Eu fiquei confuso. Era uma voz familiar, mas, minha memória teve que mergulhar fundo para buscar as associações certas. Então, vi nele um velho amigo, substituindo instantaneamente o estranho que falhava em reconhecer. Quinze anos gravavam sua passagem naquela face. Senti uma alma mais calma, mais profunda, mas ainda intensa, o artista que sempre olha para o mundo com dor e esperança interessadas. Uma redescoberta, algo restaurado. A perda que completa seu ciclo no encontro.

Uma ponte foi lançada por sobre o abismo do tempo passado, alcançando o presente; e havia nisso felicidade, simplesmente na própria reconexão. Surgia também, aquela sensação que todo reencontro propicia, a de que algo se fora de maneira tola, estranhamente desviado, mas, agora endireitado novamente. A palavra ‘reconhecer’ ganhou, com o tempo, novas camadas de significação, não apenas a identificação de uma pessoa, mas, a idéia de retomar a posse da terra, e a compreensão da validade ou da verdade. Porém, em sua raíz, reconhecer é alcançar novamente a ‘gnose’, a palavra que os Evangelistas e São Paulo usaram para o conhecimento. Jesus traz consigo a gnose de Deus que salva, porque é o conhecimento que é amor.

‘Veio para o que era seu e os seus não o receberam...’ Nessa falha do mundo em reconhecê-lo, a tragédia da história se inicia e desce inexoravelmente até a completa desarticulação e alienação do Calvário. Nunca alguém faria algo assim, aquilo que se faz a vítimas e bodes-expiatórios desde tempos imemoriais até Birchenau e Srebrenica, se soubesse quem eles eram na verdade. A ignorância é a raíz do pecado. E portanto, a iluminação do conhecimento, não apenas o factual ou intelectual, mas, a própria gnose, cura o pecado.

No outro extremo do Evangelho de João, toma lugar um reconhecimento de sucesso, de fato, muitos, se na verdade pudermos separá-los, que nos levam através da tragédia da Cruz, para um mundo novo: o universo, a visão mundial da Comédia. Tal como nos maiores artistas, aqui o trágico não é diminuído, mas, deixado para trás, num final feliz que reúne a tudo e a todos. A separação dos indivíduos produz o casamento das almas.

Maria Madalena chegara pesarosa para untar o corpo de Jesus, encontrando o sepulcro vazio. Os anjos que viu ali, não lhe foram de muita ajuda. Então, ela se voltou e viu Jesus ‘de pé’ (simplesmente, como se lá estivesse o tempo todo), mas, ‘ela não o reconheceu’. A tragédia e a comédia começam a competir entre si: um sinal seguro de que a verdade está para chegar. Jesus lhe faz a pergunta de sabedoria, que encontramos em muitas fábulas, uma variação de ‘como voce está passando?’. ‘Por que choras? A quem procuras?’ Não é o tipo de pergunta que voce faz a um estranho, a menos que voce saiba não ser um estranho para ninguém.

Aproximando-se do farsesco, Maria pensa que ele é o jardineiro e em sua confusão faz uma tentativa desesperada: talvez, por alguma razão, este trabalhador tenha removido o corpo. Diz-lhe Jesus: ‘Maria’: ele devia estar olhando para ela e atraiu a sua atenção. Em outras situações, seu olhar modificou vidas. Desta vez foi um reconhecimento. ‘Ela então o reconhece e lhe diz em hebráico: “Rabbuni!” que quer dizer Mestre.’ O que parece ter havido é que ela percebeu-se conhecida, e essa experiência passou por ela como um raio de conhecimento, que a trespassou e destruiu sua ignorância, libertando-a para reconhecer aquele que tornou claro para ela, que ela era conhecida.

Que maneira mais econômica para se desvrever a Ressurreição. Sem ‘Ohs’, ‘assombroso’, ‘uaus’, ‘que surpresa’. ‘Rabbuni’, em sua língua natal. Ele estava ali, e ela estava ali, nada, nunca mais haveria erros ou falhas entre eles. Não há impedimento para o casamento de mentes verdadeiras. A vida continuava a mesma, contudo, jamais voltaria a ser a mesma. ‘Ele nos chega oculto,’ disse Simone Weil, depois que, em uma tarde, ele a visitou em seu quarto ‘e a salvação consiste em reconhecê-lo’.

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