O Cauvery - Índia






Laurence Freeman OSB
Junho de 2006
Tradução: Roldano Giuntoli

O rio atrai tanto visitantes quanto cidadãos locais nas horas mais frescas do dia. Mas, mesmo no pesado calor do meio-dia você pode encontrar um camponês lavando-se ou, lavando sua vaca complacente. O Cauvery é o rio sagrado do sul da Índia. Assim como o Ganges no norte, ele alimenta, limpa, refresca e é uma fonte de contemplação sempre presente. É vasto em largura e majestoso e, nesta época do ano quase todo seco.

Shantivanam, o ashram beneditino que Dom Bede Griffiths tornou famoso, onde ele recebeu peregrinos durante quarenta anos e, onde faleceu e foi enterrado, fica nas barrancas daquele rio. Nos ritmos lentos do ashram, que fazem com que a vida dos mosteiros ocidentais nos pareça energética ou, ao caminhar ao longo da lateral do rio, o tempo cessa, a realidade se torna afiada e, surpreendentemente, seus desejos começam a mudar.

Se quiser ficar só, você não deve ir ao rio. Os jovens logo te cercam: qual teu país? Qual é teu nome? Sua vontade de te conhecer não é menos genuína, por transparecer sua intenção de descobrir como é que você lhes poderia ser útil. É o visitante ingênuo que acredita poder se misturar sem ser notado entre os locais. Chandru aparece manifestando curiosidade, meticulosamente cortês, porém, fixando-me com sua atenção – obviamente alguem cuja timidez nunca foi um problema. Logo, estamos discutindo seus autores ingleses favoritos, Wordsworth, Keats, Shelley e, procurando juntos nos lembrarmos de um exato trecho de Donne e, então ele me lembra da trama de As You Like It. Ele ama apaixonadamente esse assunto e sua própria proficiência nele e deseja fazer um mestrado. Seu eu menciono algum autor que ele não conhece, ele parece desanimar, mas apenas momentaneamente. Sua esperança, ambição e sua auto-confiança estão constantemente arrebentando qualquer resquício de incerteza que nele haja. Seria um prazer ensiná-lo. Como a maioria dos Indianos ele tem um profundo respeito pelo professor e deseja se tornar um, ele mesmo.

O pai de Chandru faleceu e ele me diz que sua mãe sozinha cria a ele e seu irmão. Eles vivem no que não chamaríamos de casa, sem eletricidade ou gás. A comida se cozinha num fogão a lenha. Sua mãe trabalha no campo por 40 rúpias, ou menos de um dólar, por dia. À medida que conversamos me dou conta que seu ego voraz e charmoso não está consumido pelo despropositado narcisismo ocidental. Qual o sentido de querer algo apenas para si mesmo? Ele sonha com o sucesso, pois isso significaria poder sustentar sua mãe e ajudar sua família. Isso seria – tenho certeza que isso um dia será – sua percepção de maior sucesso. O “eu” na Ásia é tão diferente de sua contraparte ocidental porque seu contexto natural permanece tão seguro dentro da família.

O ashram ajuda Chandru e outros jovens a realizar seu sonho. No vilarejo vizinho de Thanirpalli, também teve início um lar para idosos, uma escola e uma tecelagem gerenciada por famílias pobres, libertando-as de contratos de serviço que representam não mais do que trabalho escravo em muitas partes da Índia. O espírito de contemplação cultivou a compaixão nos discípulos de Dom Bede. Sua evangelização é local e concreta, não de abstrações impessoais de convertedores. Mas no entorno, toda a Índia está explodindo. Através de Chandru e de um bilhão de outras vidas de seus concidadãos, está ocorrendo um movimento histórico, tão poderoso e impessoal quanto a inundação do rio Cauvery. Mumbai crepita com a eletricidade do dinheiro, tal como Shanghai. O acentuado declínio do ocidente, call centers em Bangalore servindo clientes em Kensington e Detroit, muitos dos mais ricos e dos maiores compradores do mundo, a poluição ambiental que é prova do progresso. Ainda assim, com o giro da roda do karma, com o crescimento da maré de prosperidade e mesmo com a Índia tornando-se uma super-potência, os pobres que estarão sempre conosco se tornam mais pobres.

É claro que me pergunto: quanto tempo sobreviverá aqui a experiência espiritual, a essa montanha russa da avareza? À medida que crescem os sinais do consumismo nos é difícil não recear que essa onipresente sensibilidade religiosa se fragmente tal como no ocidente. A exceção aqui é que a religião não é uma instituição. É um modo de responder a cada situação da vida. Deus está em toda parte e tanto os bons como os maus acreditam. Está em cada coração e também é intermediado pela natureza e pelo guru. A vida é o sacramento em si mesma. Por isso, a física atômica coexiste com o Shiva dançarino. Não há rompimento entre logos e mythos tal como na psique ocidental. Os visitantes não deveriam buscar misticismo de férias na Índia, mas inspiração para lidar com as doenças da opulência e com o pecado capital da superficialidade. A Índia pode ainda vir a conseguir prosperar e também reter a lembrança de Deus.

No escuro daquela noite ouvi um ruído mecânico estranhamente familiar. Na manhã seguinte, três enormes escavadeiras amarelas apareceram com suas lanças elevadas, prontas para dragar a areia do leito do rio. Por três dias eu estive preparado par o início do assalto e, então, sem razão aparente elas se foram. O rio venceu. Afinal, isto ainda é a Índia.

Laurence Freeman

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