O Monstro Marinho






O Monstro Marinho
Laurence Freeman OSB
Agosto de 2007
Tradução: Roldano Giuntoli

Era uma tarde quente, que a brisa marinha mal conseguia refrescar. Durante todo o dia, o velho Verão se afirmara sobre as mudanças climáticas. Estávamos no equinócio, quando a duração do dia e da noite é praticamente a mesma e o Sol cruza o equador celeste com uma declinação de 0.

Depois de uma longa e árdua caminhada, através de uma curta, mas, às vezes imensa região selvagem e ao longo do topo de pronunciados penhascos, eu estava alegremente exausto. Eu também estava arranhado e suado e ansiando por uma caneca de chá e um chuveiro, antes da meditação do entardecer. Tão logo divisei habitações humanas nos limites da terra média, entretanto, outra aventura se apresentou. Quem disse que alguma coisa viria a ser fácil? Tão logo a estreita picada começou a aparecer beirando o penhasco, prometendo me levar facilmente ao nível do solo, de volta aos doces confortos, um estranho som me alcançou. Não era uma voz, mas, possuía uma intensidade quase humana, chegando na minha direção com o vento do mar. Queria chegar em casa, mas, também necessitava explorar.

Desci tropeçando, por uma das laterais do penhasco, em direção ao mar, contente com minhas botas de trilha. Ali não era tanta a altura, mas, era escorregadio e difícil de se manter o equilíbrio. O som crescia à medida que eu descia. Quando ouvi mais claramente sua pulsação rítmica, tive certeza que se tratava de algo mais do que simplesmente um produto do vento, da água e das rochas. Parecia senciente.

Finalmente, cheguei tão perto de sua fonte quanto pude. As duas laterais do penhasco se aproximavam em ângulo agudo, numa fissura na rocha marcada por cavidades. Elas quase se tocavam. A estreita fenda entre elas se abria em um estreito e profundo abismo, que o mar o enchia e dele fluía para fora. A movimentação das águas, em sua tarefa similar à do sacerdote, tal como Keats a descreveu: ‘Of pure ablution round earth’s human shores’ (de pura ablução em volta das praias humanas da terra), mas, aqui, nos limites da cristandade, tratava-se de uma liturgia mais selvagem. Lá embaixo, muito para dentro, em um espaço escuro, uma pequena câmara guardava o segredo. À medida que eu escutava, não restava dúvida que havia uma respiração, ainda que agitada e, essa respiração estava relacionada à subida da maré. Periodicamente, se agitava numa tentativa desesperada de escapar e, então, caía de volta em exaustão. Eu não podia vê-lo, mas podia ouví-lo e, sabia que ele estava ali, assim como aqueles que querem ir à guerra, sabem que o inimigo possui armas de destruição em massa.

No entanto, eu não tinha certeza que a criatura presa lá embaixo na caverna era hostil. Às vezes, seu protesto contra as duras e inclementes forças de seu ambiente, se tornava um pungente apelo por salvação. Não seria essa a diferença que os humanos deveriam fazer para o mundo? Ajudar outros seres, sem levar em conta o preço do próprio conforto ou sobrevivência? Ainda assim, os sons também eram perigosos. O que quer que fosse, uma foca, um golfinho perdido, amigo de humanos, talvez até mesmo uma pequena baleia e, era invisível. Talvez, e, à medida que eu perscrutava mais a fundo o abismo, esse pensamento tomou corpo, não se tratava de uma dessas criaturas das profundezas, mais familiares, mais amigáveis..

Naquela noite, eu provavelmente sonhei com Grendel, o primeiro monstro que Beowulf matou por aterrorizar os humanos. Grendel, um descendente da raça de Caim, foi literalmente desarmado pelo herói, mas, então, a mãe do monstro, louca com o pesar pela morte do filho, apareceu e, provou quase poder derrotar o herói humano. Após uma corajosa luta, ele também a despachou; mas, logo em seguida, numa batalha com um wyrm, um dragão que fora acordado por um escravo foragido que roubou uma caneca de seu covil, o próprio Beowulf foi mortalmente ferido. (N.do T.: de um épico anglo-saxão da idade média)

Talvez essas lendas já estivessem latentes em minha tentativa de investigar a criatura invisível e, decodificar seus sons desesperados. Então, ela não parecia mítica – as reuniões no Pentágono ou no Ministério da Defesa também pareciam bem racionais. A evidência dos sentidos, afinal, é a base do conhecimento e da ciência. Nos esquecemos de que tudo é mítico, exceto a verdade. O mito pode intermediar a verdade, mas, é um intermediário. Não devemos acreditar naquilo que não resiste ao teste da contemplação – colocar os pensamentos de lado. A raça de Caim ama batalhas e aventuras, exalta heróis mortos, esquece seus guerreiros feridos quando são levados para casa e, repete os mesmos erros. As palavras do Mestre acerca daqueles que vivem pela espada, parecem estragar o prazer da aventura.

Gradativamente – talvez a lembrança do chá tenha ajudado – me dei conta que nada podia ser feito por Grendel, se é que se tratava de Grendel. O bom senso me fez ver que eu não deveria montar uma equipe de resgate. Alguns dias depois revisitei o local e, o som ainda estava ali. Mas, o compreendi melhor.

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